sábado, 20 de junho de 2009

Frei Prudente Nery: o amigo

Hoje recebi uma notícia triste. Faleceu em Uberlândia (MG), nesta madrugada, Frei Prudente Nery. Perdi um amigo, um grande teólogo e meu orientador espiritual dos últimos anos. E o mundo perdeu um homem iluminado.
Lembro-me de seu bom humor, de suas observações originais e profundas. Com a voz suave, quase sussurrando, falava com o vigor e a liberdade dos profetas bíblicos. Como filho de São Francisco, amava a simplicidade, a vida escondida, a discreção, o ambiente familiar.
Ao mesmo tempo, transitava com facilidade por distintos saberes: a teologia, a filosofia, a psicologia, a antropologia. E nisto residia o prazer daqueles que o ouviam. Prudente jamais se repetia ou caia em “lugar comum”. A ele cabia uma originalidade sem par. A palavra que iluminava, desvelando a presença de Deus no cotidiano, nas buscas humanas. Uma admirável síntese do rigor alemão com a fluida poesia.
Faz algum tempo, Prudente deixou uma meditação sobre a morte. Esta mesma “irmã morte” que pai Francisco recordou ao final do Cântico das Criaturas. Dela seleciono o último parágrafo. Certamente, agora, Prudente experimenta o que poeticamente anteveu.
"Quando chega o inverno no hemisfério norte, sem que ninguém os instrua, os pássaros erguem-se espontaneamente aos céus em incrível aventura. Conduzidos por um misterioso legado de sua espécie, seguindo apenas os pulsos magnéticos da terra, eles voam, pelas trilhas do sol, milhares de quilômetros, noite e dia, à busca apenas de permanecer na vida. Assim há de ser também conosco, quando, no crepúsculo de todos os outonos, cair sobre nós o frio do inverno. Carregados, então, pelo fascinante destino de nossa espécie, nós voaremos, seguindo apenas os acenos da eternidade, rumo à morada da luz, o coração de Deus. E aí saberemos o que, agora, apenas intuímos e, ouvindo Jesus Cristo, o Caminho, a Verdade, a Vida, cremos: Não existem dois reinos, o reino dos mortos e o reino dos vivos, o reino da terra e o reino dos céus, mas apenas o Reino de Deus, que quis que fôssemos eternos".

domingo, 7 de junho de 2009

Trindade: que belo mistério

No “catecismo da doutrina cristã”, que surgiu no século 16, havia uma pergunta assim:
- Quem é Deus?
A resposta correspondente era:
- Deus é o Espírito Perfeitíssimo, criador do Céu e da Terra.
Se olharmos para pinturas antigas nas Igrejas, encontraremos o Deus-patriarcal, representado por um velho barbudo, de cabelos brancos, de vestes alvas.
Bem outra é a percepção de Deus, a partir da Bíblia. As escrituras judaicas, que nós cristãos chamamos de “Antigo Testamento” ou “Primeiro Testamento” nomeiam Deus preferentemente como “Javé”. Esta expressão resume dois lados da figura divina: Ele(a) é “Aquele(a) que é”, simplesmente sem outras definições. Javé também é o Deus que “está do lado do seu povo”. Podíamos resumir assim: transcendência e presença.
Porque Ele(a) é sempre mais do que podemos imaginar ou representar, os judeus prescreveram que não se podia fazer qualquer imagem de Javé. De outro lado, Javé se mostra na caminhada histórica do seu povo como “o libertador”, “o resgatador” (goel), aquele que oferece uma aliança: “Eu serei o seu Deus e vocês serão o meu povo”. Somente mais tarde, no momento de grande crise no exílio, eclode a consciência explícita que Javé é o criador.
Nós, cristãos, herdamos dos judeus uma crença de que o nosso Deus não é uma mera força cósmica impessoal, que garante o eterno ciclo das coisas, e sim o “Deus conosco”, que acompanha a história do seu povo. E, porque é libertador, é também criador. O ato criador, que pode ser compreendido como um imenso processo evolutivo, consiste em organizar o caos, dar sentido, beleza e harmonia à bioesfera. E Deus prepara o ser humano para ser o “jardineiro da criação”, cuidar dela, tirar o necessário para seu sustento, dominar e cultivar.
A partir de Jesus de Nazaré, Deus se fez um como nós. Quis viver nossa vida, provar o jeito de ser das criaturas, levar à máxima expressão as possibilidades humanas de fazer o bem.
Ao final de sua missão, o próprio Jesus promete aos seus discípulos que lhes enviaria o Espírito Santo. Na visão do evangelista João, o Espírito é chamado de Paráclito, palavra grega que sintetiza muitos papéis: advogado, defensor, intercessor, representante... Na expressão de Lucas, o Espírito é o sopro e o fogo divino, presente em Jesus de Nazaré, que é derramado nos seus seguidores. Para Paulo, o Espírito clama em nós, como a força do Ressuscitado.
Assim provamos Deus, como Aquele(a) que simultaneamente é:
- antes de nós (preparando o cosmo e a história, oferecendo a possibilidade de processos de libertação e de aliança),
- conosco (no caminho do deserto, na vida de Jesus de Nazaré)
- e em nós (pelo Espírito Santo), abrindo caminho para o futuro.
Nos primeiros séculos do cristianismo, houve muita polêmica e discussão, até chegar ao consenso de que o nosso Deus é um só, em três pessoas divinas. Não se trata de um “mistério lógico”, de um enigma a resolver, e sim de um “poema inesgotável”: quanto mais se conhece, mais possibilidades se abrem...
Em Deus, a diferença não cria divisão. E a unidade não descamba em individualismo. Bela lição para o ser humano... No momento em que a humanidade valoriza as diferenças de culturas e etnias, de gerações, de gênero (homem-mulher) e de identidades sexuais, voltamo-nos para a Trindade como figura inspiradora. Deus mesmo é unidade na diferença, comunidade construída continuamente no amor que circula e se extravasa.
Quando se descobre que a biodiversidade é o fundamento da força dos ecossistemas, que o diverso possibilita múltiplas relações de cooperação entre os seres, voltamo-nos novamente para o Deus tri-uno. Pois na comunidade trinitária “somos, nos movemos e existimos”.Que belo mistério, este de Deus!

Imagem: Santíssima Trindade- Marcos Lara- artista gráfico
Nanquim s/ Papel