Ir. Afonso Murad
“Levanta-te
e come, levanta-te e come!
Que o
caminho é longo, caminho é longo”.
Deus nos surpreende! Por vezes,
estamos desanimados, cansados de lutar, e quando menos esperamos, recebemos
palavras estimuladoras e gestos de alento. Então, sentimo-nos revigorados, como
o profeta Elias. Alimentamo-nos, descansamos e partimos para a missão,
renovados, percorrendo o caminho fascinante e sinuoso, ao encontro de Deus (1
Re 19,4-8).
Estimulante
surpresa
Homens e mulheres, que há anos se
empenhavam para que o Evangelho se encarnasse no ritmo da existência dos povos,
que a Igreja fosse mais servidora e flexível, encontraram na Exortação
Apostólica “Alegria do Evangelho” (Evangelii
Gaudium) um porto seguro e feliz, no qual ancoraram, se reconheceram e
ganharam forças.
O documento recolhe as contribuições
do Sínodo dos Bispos de 2012 sobre a Nova Evangelização e dá orientações
concretas para a Ação Evangelizadora. Papa Francisco não tem a pretensão de
proferir uma palavra definitiva ou completa (EG 16), mas sim deseja iluminar e
abrir caminhos para a Igreja nos próximos anos (EG 1). Ele acredita na
descentralização do poder na Igreja e na participação ativa de bispos, padres,
religiosos, leigos e leigas (EG 16). “Alegria
do Evangelho”, fruto de elaboração coletiva com o claro posicionamento de
Francisco, visa estimular processos de reflexão, discussão e novas práticas,
que compete aos cristãos e às suas comunidades, em diferentes níveis. Propõe algumas
diretrizes para encorajar e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa
evangelizadora (EG 17), cheia de ardor e dinamismo, com base na Lumen Gentium, do Vaticano II. Eis o
forte apelo:
Sejam ousados e
criativos nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os
métodos evangelizadores das suas comunidades. Uma identificação dos fins, sem a
busca comunitária dos meios para alcança-los, está condenada à mera fantasia.
Apliquem, com generosidade e coragem, as orientações deste documento, sem
impedimentos nem receios (EV 33).
O discurso de Francisco é coerente
com sua postura de Igreja-comunidade. Ele renuncia
a tratar detalhadamente de várias questões que devem ser objeto de estudo e
aprofundamento, principalmente nas Igrejas locais (EG 16). No
correr da Evangelii Gaudium, valoriza
e incorpora a contribuição das Conferências Episcopais de várias regiões do
mundo. Nas últimas décadas, documentos papais citavam preferentemente outros
Papas ou o próprio pontífice. Tal procedimento era acompanhado por certa
pressão sobre as Conferências Episcopais e regionais que deveriam, cada vez
mais, citar e reproduzir as palavras do Papa e seguir as orientações da cúria
romana. Com isso se retirava das Igrejas locais a responsabilidade de
interpretar o Evangelho e encarnar a mensagem em diferentes contextos. Elas se
tornavam meras repetidoras da autoridade centralizada. A mesma pressão se fez sentir
sobre as Conferências de Religiosos/as em várias partes do mundo.
No nosso continente, nas décadas de 1980
e 1990 a CLAR foi acusada, injustamente, de criar um “magistério paralelo”,
porque rejeitava a infantilizadora determinação de ser meros repetidora do pensamento
romano. Dizia-se que a VR feria a comunhão. Ora, desde quando fornecer critérios
de interpretação e sugerir processos comunitários para interpretar a Palavra de
Deus fere a comunhão eclesial? Aqueles e aquelas que sofreram dura perseguição
nos anos passados, porque levaram a sério a tarefa de renovar a Igreja no
espírito do Concílio, encontram nas palavras do Papa Francisco consolo e força:
“Valeu a pena lutar. Finalmente somos reconhecidos!”
A exortação de Francisco traz ar
fresco e revigorante a toda a Igreja: leigos/as, presbíteros, os consagrados/as,
suas comunidades e Institutos. Como os fatos e as palavras rapidamente escapam
do nosso horizonte, é preciso voltar aos seus temas essenciais, para que os
apelos do Espírito ressoem e encontrem eco nas pessoas, nas comunidades e nas
instituições. A teoria da comunicação tem ressaltado que o ciclo comunicativo
somente se realiza quando há recepção e expressão dos interlocutores. Não basta
que a mensagem seja transmitida. Ela deve ser acolhida, interpretada, vivida,
reelaborada e comunicada.
Esse artigo colabora no movimento de
recepção da mensagem do Papa Francisco para a Vida Religiosa, em “A alegria do
Evangelho”. Ele se soma a outros já escritos ou por escrever. Seleciona alguns
textos que parecem mais significativos ao autor, que, a partir daí, tece
algumas reflexões e provocações. Concentra-se na introdução geral e na primeira
parte da Exortação, que convoca a todos para empreenderem um deslocamento da
“Igreja em saída”. Espera-se assim oferecer um material de reflexão e discussão
para as pessoas e as comunidades, especialmente por ocasião do “Ano da Vida Consagrada”, proposta
também pelo papa Francisco. Desenvolver-se-ão aqui dois pontos: alegria e
leveza, e atitudes básicas dos discípulos/as missionários na Igreja “em saída”.
Antes de mais nada, Francisco
relembra a todos os cristãos (e também ao religiosos/as, claro) que nossa vida
e missão se radica em Jesus. O processo de renovação da Igreja é uma volta a
Jesus, ao mesmo tempo voltando-se para o mundo. Eis o tesouro, o segredo
simples e belo, expresso de forma breve no início da Gaudium et Spes: as alegrias e tristezas, esperanças e dúvidas da
humanidade ressoam no coração dos discípulos de Cristo (GS 1). Ou de forma
breve no lema do I Congresso Internacional da Vida Consagrada, em 2004: “paixão
por Cristo, paixão pela humanidade”.
Cada vez que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor
original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras
formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado
significado para o mundo atual (EG 11).
Alegria
e leveza
Certa vez, em Encontro de Novas Gerações,
Luiza, jovem juniorista, desabafou:
“Pra mim, a coisa mais difícil na Vida Religiosa é a
tristeza. Na minha comunidade, não temos espaço para rir, dar gargalhadas,
falar alto. Tudo é muito sério. Funciona como uma máquina. Sair do horário, nem
pensar. Eu chego da Faculdade quase meia noite, e já estou na oração às 5h30 da
manhã, para recitar fórmulas. Não sei até quando vou aguentar”.
Quem conhece um pouco as
congregações religiosas, sabe que a afirmação dessa jovem consagrada não é
exagerada. Faz alguns anos, na Assembleia Geral da CRB (Conferência dos
Religiosos/as do Brasil), o tema da Leveza
se destacou, a ponto de constituir uma das linhas de ação de Vida Religiosa no
triênio. Constatou-se que a rigidez marcava as relações interpessoais e a
postura de vida de pessoas, em comunidades e Institutos. O tema da Leveza
suscitou interesse, despertou para a reflexão, a partilha e o desenvolvimento
de novas atitudes.
Para qualquer pessoa madura, a vida
adulta inclui cargas e pesos, dificuldades, responsabilidades e compromissos.
Portanto, leveza não é sinônimo de visão ingênua e adolescente, que nega este
componente inevitável da vida. De outro lado, todo ser humano equilibrado e
feliz tem o seu lado de leveza: gratuidade, fruição, flexibilidade,
contentamento. Tanto a nível pessoal, quanto comunitário e institucional, a
Vida Religiosa talvez tenha cultivado demais “um lado da balança”. O resultado
é visível: pessoas pesadas e pessimistas. Instituições aferradas no passado,
com medo de avançar e sair de sua “zona de conforto”.
Abordar o tema da leveza na Vida
Religiosa é importante para ajudar a perceber aquilo que nos engessa. E responder
com alegria, disponibilidade e agilidade aos apelos de Deus nos dias de hoje! A
exortação do Papa Francisco atualiza o tema da “Leveza e agilidade”, que para
ele se expressam principalmente como “alegria, conversão pastoral e saída”.
Francisco aponta também outra causa
da tristeza, que já não é mais a do excesso de trabalho e de certa rigidez, que
caracterizava as gerações antigas. Desta vez, provém da tendência egocêntrica e
individualista da cultura moderna.
O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e
avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do
coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais,
da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios
interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já
não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem
fervilha o entusiasmo de fazer o bem (EG 2)
A alegria não se traduz
necessariamente em rir sempre e gozar de um constante estado de espírito
marcado pela euforia. Nos momentos duros, difíceis, todo ser humano tem o
direito de se entristecer. Diante de perdas extremas, com a morte, é necessário
o tempo de luto. Mas isso é diferente daquele(a) que vive em constante
tristeza, “em estado de quaresma sem páscoa”, como diz Francisco.
A alegria não se vive da mesma maneira em todas as etapas e
circunstâncias da vida, por vezes muito duras. Adapta-se e transforma-se, mas
sempre permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal
de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados. Compreendo as
pessoas que se vergam à tristeza por causa das graves dificuldades que têm de
suportar, mas aos poucos é preciso permitir que a alegria da fé comece a
despertar, como uma secreta mas firme confiança, mesmo no meio das piores
angústias (EG 6).
Cada um/a de nós é chamado/a a cultivar esta atitude de alegria e leveza,
que nos fazem felizes, “de bem com a vida”. E assim transparecemos a alegria de Deus, que
nos ama incondicionalmente. O cultivo da leveza, da alegria e da itinerância,
nos liberta para a ousadia do Reino. Existem estreitos laços entre
espiritualidade, alegria e missão.
Do ponto de vista teológico e
pastoral, Francisco nos fornece duas importantes chaves de leitura: “A alegria
do Evangelho é missionária” e “a intimidade com Jesus, itinerante”. Com isso,
supera-se uma visão intimista e meramente subjetiva da fé e da experiência
religiosa. Nos evangelhos se relata que os 72 discípulos voltam da missão que o
Senhor lhes confiou, cheios de alegria (cf. Lc 10, 17). O próprio Jesus exulta
de alegria no Espírito Santo e louva o Pai, porque a sua revelação chega aos
pobres e aos pequeninos (cf. Lc 10, 21). Também acontece assim com os primeiros
que se convertem no Pentecostes, ao ouvir “cada um na sua própria língua” (At
2, 6) a pregação dos Apóstolos. Esta alegria é sinal de que o Evangelho foi
anunciado e está frutificando (EG 21).
A intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante,
e a comunhão é missionária. Fiel ao Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para
anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem
demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo,
não se pode excluir ninguém (EG 23)
Talvez um dos grandes entraves na
Vida Religiosa consista em não colocar em prática, já na formação inicial,
estes dois princípios, da alegria missionária e da intimidade (com Jesus)
itinerante. É certo que nessa etapa se faz necessário cultivar o autoconhecimento,
o acompanhamento pessoal, o espírito de família, a internalização das atitudes,
os compromissos comunitários, a limpeza e conservação da casa, a
espiritualidade, os momentos de oração e o estudo. Mas é notório que padecemos
de um desequilíbrio. Especialmente nos institutos masculinos. Certa vez, num curso
para formadores, perguntou-se como se organizava a típica semana dos postulantes.
Frei Carlos respondeu:
“Durante a semana, de manhã eles estudam filosofia na
Faculdade. De tarde, limpam a casa e fazem esporte. Algumas vezes na semana,
temos aulas de formação sobre a doutrina cristã, o fundador e a congregação. De
noite, é tempo pessoal. E no final de semana, nos sábado à tarde e no domingo
de manhã, um pouco de pastoral. Afinal, temos que evitar os exageros!”.
A ilusão das equipes de Formação (e dos/as
provinciais) consiste em crer que se forma para a missão deixando os jovens
praticamente todo o tempo em casa, com atividades internas. Ora, reflexões
pedagógicas atuais sustentam que aprendizagens significativas se constituem a
partir de experiências, vividas intensamente, refletidas e explicitadas. A
teoria serve para explicar, organizar, compreender, relacionar, conceituar,
aperfeiçoar. Já na formação inicial os jovens (e seus/suas formadores)
necessitam experimentar a alegria missionária e a intimidade itinerante com
Jesus. Caso contrário, buscarão sua alegria em outros lugares. Em vez da fonte
de água viva, se refugiarão em cisternas rachadas que não retém a água! (Jer
2,13; Jo 7,37-38)
1ª parte do artigo Alegria itinerante de discípulos/as missionários/as.
Atitudes da Vida Religiosa “em saída” publicado na Revista "Convergência", novembro de 2014. Veja a continuação na postagem anterior.