segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Primavera


Chegou a primavera.
Bela palavra, esta: prima + vera.
Dois termos latinos: primeira + verdadeira.
Por mais longo que seja o inverno, a primavera vem.
Pois a verdade primeira, aquela que prepara todas as outras, são seus sinais: as flores, a beleza que vem de dentro, a esperança que renasce, o canto de pássaros e de pessoas.
Nisto creio, por isso aposto minha vida.
Nesta verdade primeira.
Prima vera.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Fazer e desfazer anos

O poeta e escritor Rubem Alves escreveu: “comunico aos meus leitores que desfiz 75 anos, muito embora os distraídos insistam em usar o verbo “fazer”. O fato é que a celebração de mais um ano de vida é a celebração de um desfazer, um tempo que deixou de ser, não mais existe. Fósforo que foi riscado. Nunca mais acenderá. Daí a profunda sabedoria do ritual de soprar as velas em festas de aniversário. Se uma vela acesa é símbolo de vida, uma vez apagada ela se torna símbolo de morte. O que não entendo é a razão pela qual os participantes, diante das velas apagadas, se ponham a bater palmas e a rir, quando o certo seria que chorassem. Eu prefiro um ritual mais alegre: acender uma vela bem grande, como um bruxedo de invocação dos anos ainda não nascidos cujo número não sei!”
Há nas palavras deste grande pensador brasileiro um ar de tristeza, e talvez até de dificuldade em aceitar os limites da idade e do envelhecer. O próprio Rubem Alves já havia dito: “Imaginem que vocês vão fazer uma viagem. A felicidade da viagem começa antes da viagem. A gente examina mapas, lê artigos sobre os lugares que vão ser visitados, conversa com amigos que já foram, olha fotografias. E só de imaginar fica feliz. Depois de feita a viagem é diferente. A felicidade ficou para trás. Só resta ver as fotos e conversar... Criança é quem ainda não viajou e fica feliz imaginando a viagem. Viagem imaginada é sempre feliz. Adulto é quem já viajou e fica feliz olhando as fotos da viagem (...) Tive algumas dores quando era criança. Mas as dores passavam logo. E a alegria voltava. Fui um menino sempre alegre. Tudo no mundo me encantava. Menino, eu não imaginava que, um dia, eu seria velho...Pois esse dia chegou. Meu aniversário me diz que agora sou velho”.
Fiquei pensativo! Algo me dizia que há outras formas de considerar o poente da existência. Dias depois fui trabalhar com um grupo de religiosas e leigos sobre o tema “Gestão e Espiritualidade”, em São Paulo. Eram umas 50 pessoas. Bem na frente, havia uma senhora com o rosto enrugado, óculos grossos, a coluna um pouco encurvada. Notava-se que tinha idade avançada. Participa animadamente da discussão em pequenos grupos, anotava as idéias principais. Um discreto sorriso vinha-lhe à face. Vibrava quando alguma idéia nova vinha à tona. Em certo momento, falamos sobre gestão participativa, e seus olhos brilharam.
Mais tarde, na hora do intervalo, ela veio me cumprimentar. Fiquei sabendo então que a anciã se chama Irmã Mariana. Tem 85 anos e atua com uma equipe de leigos num centro sócio-educativo no interior de São Paulo, que atende a 150 crianças empobrecidas. Ela me disse como alegria:
“Estou descobrindo como é bom trabalhar em grupo. Durante muito tempo em minha vida atuei sozinha. Agora vejo que, com os outros, é melhor”.
Mariana, com seus 85, não desfaz anos. Mantém o coração de criança e o espírito de aprendiz; aquele sopro de renovação que Rubem Alves anuncia nos seus belos textos poéticos. Envelhece de outra forma, saboreando o presente e com o olhar no futuro. Ao final da palestra, deixei para o público presente meu email e o endereço do blog. Mariana comentou: “Comecei a aprender a mexer com computador aos 75 anos. Que bom, agora vou descobrir o que é um blog!”

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Pára-raios, antenas e terraços

Outro dia, estava no último andar de um prédio, na cidade de São Paulo. Conversava com um grupo de educadores e profissionais sobre “Espiritualidade”. Ao ver aquela paisagem me vieram à mente algumas imagens urbanas para falar do tema. Três componentes me chamaram a atenção, no alto de tantos prédios enfileirados: os pára-raios, as antenas e os terraços.
A espiritualidade moderna funciona como um pára-raios. O ser humano, atribulado por tantos problemas pessoais, como relações afetivas, dificuldades para educar os filhos, crise financeira, doenças psico-somáticas, estresse e perda crescente de sentido para viver, recorre ao sagrado em busca de alívio. As experiências religiosas emotivas fortes caracterizam grande parte da mística contemporânea, para diminuir suas tensões. Isso explica em parte o crescimento vertiginoso do pentecostalismo evangélico e da renovação carismática católica. A religiosidade tem uma função terapêutica. Na verdade, pode curar ou simplesmente atenuar a dor e o sofrimento.
A espiritualidade do pára-raios é ambígua. De um lado, ela abarca uma dimensão real da experiência espiritual, quando as pessoas provam a misericórdia e a bondade de Deus, aliviam suas dores e recuperam a alegria de viver. Muitas delas conseguem superar graves estados de desespero e degradação, quando se conectam com Deus e descobrem que a vida não está perdida. De outro lado, a relação com o sagrado pode se tornar funcional. As pessoas buscam a Jesus somente nos momentos de tempestade. Além disso, a relação entre céu-terra parece vir somente de cima. Anula-se o valor das realidades humanas, pois elas estão submetidas ao critério dos “raios celestes”. A experiência religiosa intensa pode ofuscar outras dimensões da realidade humana e dar margem à intolerância e às novas formas de opressão.
Prefiro imaginar a espiritualidade como antena. Do alto da cidade, há enormes antenas que transmitem sinais de TV, celular, rádio e internet. O homem e a mulher que fazem uma experiência espiritual encarnada são semelhantes às antenas e seus componentes complementares. Recebem, interpretam e disseminam sinais. À luz da energia divina, decodificam os traços de luz e sombras da realidade humana. Estão antenados nas grandes questões sociais, culturais e ambientais da atualidade. Procuram perceber o que Deus lhes diz ali. A presença divina se manifesta para eles como apelo, denúncia, indignação e anúncio esperançoso. Cultivam uma espiritualidade que se alimenta da vida e da Bíblia. No cotidiano, não há respostas prontas, nem raios que vêm do céu de forma estrondosa. O pára-raio é importante, para evitar que as antenas se queimem. Mas o núcleo da experiência religiosa não reside no seu caráter milagroso. E sim, em ser sinal de vida e esperança.
Por fim, vejo na grande cidade alguns terraços no último andar. Ali as pessoas se encontram, comem, bebem e festejam. Imagino que a espiritualidade é também o espaço do encontro de pessoas, que se fortalecem na fé. Jesus gostava de fazer festa. Acolhia as crianças e chamava a participar da mesa várias categorias de gente excluída no seu tempo: as mulheres, os pobres, os pecadores, os doentes. O encontro com Deus promove o encontro com os seres humanos. E nesta mesa da irmandade também participam todas as criaturas. É a festa da sustentabilidade. Aqui ressoa a palavra de Jesus: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10).