sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Espiritualidade e construção da paz

Partilho com você este belo texto de Leonardo Boff, no momento em que estou com professores universitários da PUC do Paraná, refletindo sobre Espiritualidade.

Todos os fatores e práticas nos distintos setores da vida pessoal e social devem contribuir para a construção da paz tão ansiada nos dias atuais. Os esforços seriam incompletos se não incluíssemos a perspectiva da espiritualidade.

A espiritualidade é aquela dimensão em nós que responde pelas derradeiras questões que sempre acompanham nossas indagações: De onde viemos? Para onde vamos? Qual o sentido do universo? Que podemos esperar para além desta vida?

As religiões costumam responder a tais indagações. Mas elas não detém o monopólio da espiritualidade. Esta é um dado antropológico de base como é a vontade, o poder e a libido. Ela emerge quando nos sentimos parte de um Todo maior. É mais que a razão, é um sentimento oceânico de que uma Energia amorosa origina e sustenta o universo e cada um de nós.
No processo evolutivo de onde viemos, irrompeu, um dia, a consciência humana. Há um momento nesta consciência em que ela se dá conta de que as coisas não estão jogadas aleatoriamente ou justapostas, ao léu, umas às outras. Ela intui que um "Fio Condutor" as perpassa, liga e re-liga.

As estrelas que nos fascinam nas noites quentes do verão tropical, a floresta amazônica na sua majestade e imensidão, os grandes rios como o Amazonas chamado como razão de rio-mar, a profusão de vida nas campinas, o vozerio sinfônico dos pássaros na mata, a multiplicidade das culturas e dos rostos humanos, a misteriosidade dos olhos de um recém-nascido, o milagre do amor entre duas pessoas apaixonadas, tudo isso nos revela quão diverso e uno é o nosso mundo universo.

A este "Fio Condutor" os seres humanos chamaram por mil nomes, de Tao, de Shiva, de Alá, de Javé, de Olorum e de outros mais. Tudo se resume na palavra Deus. Quando se pronuncia com reverência este nome algo se move dentro do cérebro e do coração. Neurólogos e neurolinguistas identificaram o “ponto Deus” no cérebro. É aquele ponto que faz subir a frequência hertz dos neurônios como se tivesse recebido um impulso. Isto significa que no processo evolutivo surgiu um órgão interior pelo qual o ser humano capta a presença de Deus dentro do universo. Evidentemente, Deus não está apenas neste ponto do cérebro, mas em toda a vida e no inteiro universo. Entretanto, é a partir daquele ponto que nos habilitamos a captá-lo. Mais ainda. Somos capazes de dialogar com Ele, de elevar-lhe nossos súplicas, de render-lhe homenagem e de agradecer-lhe pelo dom da existência. Outras vezes, nada dizemos, apenas O sentimos silenciosos e contemplativos. É então que nosso coração se dilata às dimensões do universo e nos sentimos grandes como Deus ou percebemos que Deus se faz pequeno como nós. Trata-se de uma experiência de não-dualidade, de imersão no mistério sem nome, da fusão da amada com o Amado.

Espiritualidade não é apenas saber mas principalmente poder sentir tais dimensões do humano radical. O efeito é uma profunda e suave paz, paz que vem do Profundo. Desta paz espiritual a humanidade precisa com urgência. Ela é a fonte secreta que alimenta a paz cotidiana em todas as suas formas. Ela irrompe de dentro, irradia em todas as direções, qualifica as relações e toca o coração íntimo das pessoas de boa-vontade. Essa paz é feita de reverência, de respeito, de tolerância, de compreensão benevolente das limitações dos outros e da acolhida do Mistério do mundo. Ela alimenta o amor, o cuidado, a vontade de acolher e de ser acolhido, de compreender e de ser compreendido, de perdoar e de ser perdoado.

Num mundo conturbado como o nosso, nada há de mais sensato e nobre do que ancorar nossa busca da paz nesta dimensão espiritual.
Então a paz poderá florescer na Mãe Terra, na imensa comunidade de vida, nas relações entre as culturas e os povos e aquietará o coração humano, cansado de tanto buscar.

domingo, 8 de agosto de 2010

O que é a escatologia cristã?

A palavra “escatologia” é a composição de dois termos gregos: “escaton” e “logos”. Escaton literalmente quer dizer “último”, “definitivo”. E “logos” é o termo técnico que tem muitos sentidos, como palavra, verbo, intelecção, discurso sobre algo. Normalmente, o seu derivado “logia” significa “estudo sobre algo”. Assim, por exemplo, biologia é o estudo sobre as diversas formas de vida; enquanto a ecologia é o estudo sobre como todas as formas de vida se relacionam na casa comum do nossa planeta (em grego, oikos significa casa). No nosso caso, Escatologia seria então o estudo sobre o último e definitivo. Somente por esta definição, podemos perceber que o conceito de escatologia sofreu uma redução. Em vez de ser um estudo sobre o último e definitivo da nossa existência pessoal, coletiva e planetário, foi considerada como o estudo sobre o que vai acontecer depois da morte e do fim do mundo. Ou seja, a escatologia passou a ser o estudo sobre “as últimas coisas”, também chamados de “novíssimos”, a partir da expressão latina que lhe deu origem. Estranhamente, na nossa linguagem coloquial novíssimo tem um sentido bem diferente, é o superlativo de novo, quer dizer uma novidade cheia de surpresa, algo que está acontecendo agora ou acabou de se realizar. Mas, na teologia e no catecismo tradicionais, “novíssimos” aponta para “as últimas coisas que vão acontecer ainda”. E como tudo já estava muito claro e definido no catecismo, não há como esperar por novidades. As imagens que herdamos sobre céu, inferno, purgatório e segunda vinda de Jesus já estão tão cristalizadas, e aludem a coisas tão previsíveis, sem deixar espaço à gratuidade de Deus, que são “velhíssimas”.

Que tipo de estudo é a escatologia? Ela é uma disciplina que faz parte de um saber mais amplo, a teologia cristã. Não se trata de um estudo sobre a morte e o além morte, usando somente o saber de diferentes ciências, como a psicologia, a biologia, a medicina, ou física quântica. A contribuição destas ciências é importante para a teologia, mas esta fala sobre as realidades últimas e definitivas à luz da fé cristã. E a fé é algo vivo, que herdamos dos que vieram antes de nós, e assumimos como um compromisso pessoal e comunitário. Enquanto disciplina da teologia, a escatologia se constrói a partir da Bíblia, levando em conta a experiência de fé acumulada pelas Igrejas cristãs, que chamamos Tradição (com T maiúscula, para diferenciar das simples tradições), e as questões atuais colocadas pela humanidade, em diferentes culturas. A escatologia é uma interpretação cristã sobre o último e definitivo, para cada pessoa e para o mundo, articulando Bíblia, Tradição e Sinais dos Tempos.
Portanto, a escatologia, como uma parte da teologia, se propõe a refletir sobre o último e definitivo na vida humana, incluindo a morte e a vida eterna. Mas, que autoridade ela tem para fazer isto? Os descrentes ou desconfiados afirmam: “Vocês estão inventando coisas a partir da imaginação. Ninguém viajou para o além e depois voltou para contar como as coisas se passam lá”. Os Espíritas, que seguem Alan Kardec responderão com tranqüilidade: “Nós temos o método e o caminho para falar com os espíritos dos mortos. O que afirmamos sobre o além está testemunhado pelos espíritos que se comunicam conosco, através dos médiuns”. Os cristãos responderão de outro jeito: “Podemos falar sobre as realidades após a morte a partir daquilo que experimentamos na nossa vida de fé, hoje”. Citando Hebreus 11,1: “A fé é um modo de possuir desde agora o que se espera, um meio de conhecer realidades que ainda não se vêem”. Assim, falamos do Céu como comunhão plena com Deus não só porque a Bíblia nos promete, mas também porque, na fé, já experimentamos como a sintonia com Deus nos enche de paz e de alegria. No outro extremo, supomos a possibilidade real do inferno, não somente porque a Escritura alerta sobre isso, mas também porque também provamos como é ruim estar longe de Deus.

São Paulo, quando escreveu à comunidade de Corinto, na qual havia muitos membros convertidos de religiões marcadas pela cultura grega, fez um esforço enorme para explicar sobre a ressurreição dos mortos. Ele se serviu de imagens de seu tempo. Foi muito feliz, ao mostrar que entre esta vida e a vida eterna há uma relação de continuidade e também de ruptura. Sabemos que Deus levará à consumação aquilo que construímos aqui de forma imperfeita e provisória. Mas não podemos afirmar, de maneira matemática, como vai ser. É legítimo usar imagens, comparações, analogias. Sabendo que elas nos abrirão algo do futuro, mas deixarão também diante do radicalmente novo, da qual não podemos dizer ainda. Veja 1 Cor 15,37-38,42-44: O que você semeia não é a planta que deve nascer, mas um grão nu (..) Depois, Deus lhe dá corpo como quer, e a cada semente, de maneira própria (...) Acontece o mesmo com a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, ressuscita incorruptível (..) é semeado na fraqueza mas ressuscita cheio de força, é semeado corpo animal, mas ressuscita corpo espiritual”.

O cristão não deve falar sobre o após-morte como se estivesse fazendo uma reportagem antecipada para a mídia. Cuidado e respeito são necessários, para não dar margem à “ficção teológica”. A linguagem adequada para fazer escatologia é a da esperança, aberta para o futuro. Por isso, deve conciliar a precisão dos conceitos com a linguagem aberta e criativa da poesia, da analogia e das metáforas. Afirmará com a certeza da fé, mas também com a humildade da esperança, pois as realidades do após-morte estão muito além de nossa compreensão. Em parte falamos, em parte nos calamos em respeitoso silêncio e reverência ao mistério que nos ultrapassa.
Por hora, fiquemos com uma definição inicial sobre Escatologia Cristã: disciplina da teologia que estuda sobre o último e definitivo em todas as coisas, especialmente sobre a morte e o destino final do ser humano e do mundo.