sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Mais poesia

Diz a escritora Adélia Prado:
"A poesia, a mais íntima, é serva da esperança".
Assim, desejo-lhe para o ano de 2011 um pouco mais de poesia.
Para vida ser mais leve e encantada.
Quem sabe, um pouco menos de trabalho e de correria, em troca de doses de poesia.
Para gerar, nutrir e disseminar esperança.
E com a esperança, fé e amor-solidário.
Afinal, é o que importa.
Feliz 2011!
Murad

domingo, 26 de dezembro de 2010

Jane, Lorrane e Gilberto

Era o entardecer da véspera de natal. Caminho pelo centro de Belo Horizonte, após a última reunião de trabalho do ano. De repente, encontro Jane na calçada. Negra, rosto envelhecido, ex moradora de rua, trabalha como lavadora de carro, vende doces e balas. Descobri-a, faz muitos anos, quando eu morava na região. Naquele tempo, ela bebia muito, não tinha sequer um cantinho para moradia e andava na rua com a filha mais nova, que recebeu o nome chique de “Lorrane”. Graças ao trabalho do Irmão Raimundo, que a acolheu carinhosamente e resgatou sua dignidade com a ajuda de outras pessoas, Jane hoje tem um barraco na periferia e a filha freqüenta a escola. Com orgulho, apresentou-me novamente Lorrane: “Ela Já tem 10 anos. Veja como está grande e bonita”. E Jane completou: “Tenho ainda outra filha, de 15 anos, que mora na Itália. Dizem que ela fala três línguas e está bem por lá. Mas eu quero encontrar minha filha!”.
Saí deste inesperado encontro lembrando-me dos pastores que foram visitar Jesus em Belém. Gente pobre, simples, de má fama, são os primeiros a provar da alegria do “Deus conosco”. Imaginei Jane e Lorrane no presépio, na gruta de Belém, olhando para Jesus.

Hoje é natal. Vim para Vila Velha (ES) e após a missa, o padre nos convidou: “Lá fora, na área livre embaixo da ponte, a comunidade está organizando um jantar para o povo de rua e moradores dos abrigos públicos”. Fui lá ver. Tudo bem organizado, comida boa, presentes, grupo acolhedor! Chegaram umas 20 pessoas. Sentei-me à mesa com duas delas. A primeira, Dona Maria, uma senhora que deveria ter uns 75 anos. Vinda do Sul da Bahia, sem recursos, mora num abrigo da prefeitura. Estava transbordando de alegria: alimento saboroso, presentes, música ao vivo. Ah, era demais tanta coisa boa ao mesmo tempo!
Meu segundo companheiro de mesa era um adulto de aproximadamente 35 anos. Gilberto, nascido em Guarapari, é flanelinha e lavador de carro na praia da costa. Hoje trabalhou o dia inteiro. Veio direto para o evento, pois ficou sabendo que ia ter uma festa de graça, de natal. Contou-me que tem quatro filhos pequenos e vive de seu trabalho. Não teve dinheiro para comprar os presentes para as crianças. Quando recebeu os presentes da comunidade, seu rosto se transfigurou. Lentamente, recolheu tudo o que havia recebido numa sacola plástica. Agora teria algo para oferecer aos filhos! Quando terminou de jantar, delicadamente pediu licença, e todo contente foi para casa, levando ainda uma marmita de comida para a mulher e a criançada.

Novamente me veio ao coração a imagem dos pastores de Belém. Desta vez, eu estava sendo visitado pelos pobres. Eles me recordavam não somente os pastores, também o próprio menino Jesus, pobre envolvido em panos, alojado fora da casa. Provei algo do espírito do natal...

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A festa do encontro

A vida humana se enriquece de maneira profunda quando há encontros.

Encontros de pessoas, de grupos, de povos, de nações.
Unir-se de fragmentos, soma transmutada em multiplicação.
Possibilidades de fortalecer e ampliar raízes, estabelecer conecções.
Algo mais do que estar geograficamente ou virtualmente próximo.
Gesto de aproximar-se, romper as solidões, questionar a auto-suficiência, trocar, abrir as mãos, olhar o outro e reconhecer sua alteridade.

Encontrar-se é tecer laços que transformam as diferenças em oportunidades de aprender.
Uma energia boa circula, de forma que os interlocutores se saciam, para buscar novos encontros ou tecer laços mais estreitos nos mesmos encontros.
O natal é a grande celebração do encontro.
Encontro de Deus com a humanidade, a ponto de se fazer um nós, para intensamente se tornar um conosco. Por isso, o menino de Belém é chamado “Emanuel”: Deus conosco.
Viva o natal, a festa do encontro!

Desta luz que ilumina tenuamente a gruta escura de Belém, se expande a Luz que se revela caminho a seguir, verdade em construção, vida comunicada.
Ao redor de Jesus acontecem muitos encontros: Maria, José, os pastores, os magos, o povo que se alegra. E essa alegria contagiante abraço o solo, o ar, a água, a energia do sol, os microorganismos, as plantas, os animais, toda a humanidade.
O filho de Deus se fez carne, se fez matéria. Para fazer-se encontro.
Viva o natal!
Afonso Murad

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Educação no Brasil: longo caminho a percorrer

Segundo a Folha de São Paulo*, “os estudantes brasileiros com 15 anos melhoraram em leitura, ciências e matemática nos últimos nove anos. Seguem, porém, entre os mais atrasados do mundo. A constatação é da avaliação internacional chamada Pisa, coordenada pela OCDE (organização de nações desenvolvidas), que analisou a educação em 65 países".
O exame avalia as áreas a cada três anos. Nesta edição, a prioridade foi leitura, em que a média brasileira avançou 4%. Essa melhora significa que o aluno de hoje tem um conhecimento equivalente a seis meses de aula a mais do que os de 2000, conforme cálculo da Folha”.
O avanço foi "impressionante". Ainda assim, os brasileiros estão com mais de três anos de defasagem ante os chineses, os líderes da lista, que passaram Finlândia e Coreia.
Mas, no ranking o Brasil está na 53ª posição, com nota semelhante a Colômbia e Trinidad e Tobago. Os avanços percentuais em ciências e matemática foram maiores que os de leitura, mas as colocações são semelhantes.
A avaliação aponta que o conhecimento médio do aluno brasileiro permite que ele entenda o núcleo simples em um texto, mas não consegue encontrar, a partir de trechos diferentes, a ideia principal de uma obra.

A notícia faz pensar. De um lado, houve melhoria na educação, fruto de imensa dedicação de professores, professoras, e gestores(as) que no cotidiano das escolas públicas e particulares, tem se dedicado com afinco à sua missão. Embora menos do que seria preciso, convém ressaltar ainda o compromisso do poder público de vários municípios, estados e da Governo Federal. De outro lado, estamos com uma situação ainda muito aquém do aceitável para uma nação com tanto potencial. A superação da pobreza e da exclusão social exige mais atenção à educação e aos educadores, nos diversos níveis. Nesta tarefa, todos nós que atuamos em escolas ou universidades nos chamamos interpelados! E temos que fazer ouvir nossas conquistas e nosso clamor.

*FSP,8 dezembro 2010

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Participação no "Religare"

Semana passada foi apresentada a primeira parte de minha entrevista no programa "Religare", produzido pelo Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da PUC-Minas, sob a coordenação de Flávio Senra, e exibido pela TV Horizonte.
Na ocasião, conversamos sobre o nosso recente livro "A casa da Teologia", redigido por Paulo Roberto Gomes, Susie Ribeiro e eu. Uma obra em perspectiva dialogal, ecumênica e didática. Dali a conversa se estendeu para a questão da religião da sociedade contemporânea.
O assunto continua no programa que será exibido hoje às 23h, e reprisado em outros horários. Logo que eu tiver cópia do vídeo, vou editar partes no youtube.
Quem for de BH, está convidado a acompanhar o programa.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Fé e ciências: o diálogo

Participei do programa "Em Pauta", da Rede Canção Nova, transimitido hoje. Trata-se de um espaço para discutir questões contemporâneas à luz da fé cristã, sob a coordenação serena de Padre Hamilton e a presença reflexiva de Frei Moser, conceituado pesquisador e professor de Ética Cristã.
Tenho grande respeito por Frei Moser, sobretudo porque é um homem que vários aspectos reflete além do seu tempo. É um visionário. Quando ninguém ainda falava de ecologia no horizonte da fé cristã, Moser lançou um livrinho sobre o tema. Foi a primeira obra que li sobre isso, na década de 80, e sem conhecê-lo, já o admirava. Mais tarde, Moser lançou no horizonte eclesial brasileiro a discussão sobre bioética. Foi instigante! Agora, no programa "Em Pauta", estávamos os dois lado a lado, partilhando saberes numa conversa de alto nível.
Já estive neste programa em outras duas ocasiões. Desta vez, o tema foi "Fé e ciência". Moser abordou a posição dos pesquisadores das ciências exatas e biológicas quanto à crença em Deus.
De minha parte, mostrei que o conceito de ciência é polissêmico. O possível diálogo da fé cristã com as ciências depende inicialmente de que área do conhecimento estamos tratando. Além disso, a fé cristã comporta um grau de "razoabilidade", de busca de compreensão. Neste sentido, a teologia é a "ciência da fé", que busca compreender o ser humano e o mundo à luz da revelação.
O cristão necessita de muitos saberes para atuar de forma correta e eficaz. Cada vez mais necessitamos das ciências e de outras saberes. No entanto, a pergunta sobre o sentido radical da vida e da morte ultrapassa o horizonte das ciências. Coloca-nos diante da Gratuidade Radical, do mistério. E para nós, que cremos, ele tem um Nome e um Rosto.
Creio que o diálogo da fé cristã com as ciências é fundamental na sociedade contemporânea. Neste diálogo nos colocamos simultaneamente como aprendizes, interlocutores e colaboradores, em busca da Verdade iluminadora e amorosa, que vai à nossa frente e nos ultrapassa.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Educação e valores

Como educar para valores consistentes, numa sociedade em constante mudança? O que caracteriza o ämbito dos valores na escola cristã? Estes temas foram colocados e discutidos no Congresso de Educação das Irmäs Sacramentinas, em Itaici (SP). Estive lá com este grupo de 380 educadores de 5 escolas (4 do nordeste e 1 do sudeste), numa experiência estimuladora: intensa participação dos professores(as), intervenções significativas na discussão, bom nível de reflexão e partilha de experiências.
Partilho com você alguns eslaides que utilizei.
Parabéns às Irmãs e aos educadores(as) sacramentinos!







segunda-feira, 4 de outubro de 2010

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Estudantes de Escatologia no ISTA

Terminei hoje o curso semi-intensivo de Escatologia, com a turma do quarto ano de teologia do ISTA (Instituto Santo Tomás de Aquino), em Belo Horizonte. As avaliações orais foram muito boas! (As provas escritas, não vi ainda). Sem dúvida, um consolo e estímulo nestes tempos difíceis para quem lida com educação neste país.
Espero que os estudantes, membros de distintos institutos religiosos, ao terminar o curso, contribuam efetivamente para uma teologia inculturada e em diálogo com o mundo contemporâneo.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Viva a primavera!!!!

Partilho com você este belo poema de Cecília Meireles. Viva as primaveras!
A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.

Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.

Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.

Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Espiritualidade e construção da paz

Partilho com você este belo texto de Leonardo Boff, no momento em que estou com professores universitários da PUC do Paraná, refletindo sobre Espiritualidade.

Todos os fatores e práticas nos distintos setores da vida pessoal e social devem contribuir para a construção da paz tão ansiada nos dias atuais. Os esforços seriam incompletos se não incluíssemos a perspectiva da espiritualidade.

A espiritualidade é aquela dimensão em nós que responde pelas derradeiras questões que sempre acompanham nossas indagações: De onde viemos? Para onde vamos? Qual o sentido do universo? Que podemos esperar para além desta vida?

As religiões costumam responder a tais indagações. Mas elas não detém o monopólio da espiritualidade. Esta é um dado antropológico de base como é a vontade, o poder e a libido. Ela emerge quando nos sentimos parte de um Todo maior. É mais que a razão, é um sentimento oceânico de que uma Energia amorosa origina e sustenta o universo e cada um de nós.
No processo evolutivo de onde viemos, irrompeu, um dia, a consciência humana. Há um momento nesta consciência em que ela se dá conta de que as coisas não estão jogadas aleatoriamente ou justapostas, ao léu, umas às outras. Ela intui que um "Fio Condutor" as perpassa, liga e re-liga.

As estrelas que nos fascinam nas noites quentes do verão tropical, a floresta amazônica na sua majestade e imensidão, os grandes rios como o Amazonas chamado como razão de rio-mar, a profusão de vida nas campinas, o vozerio sinfônico dos pássaros na mata, a multiplicidade das culturas e dos rostos humanos, a misteriosidade dos olhos de um recém-nascido, o milagre do amor entre duas pessoas apaixonadas, tudo isso nos revela quão diverso e uno é o nosso mundo universo.

A este "Fio Condutor" os seres humanos chamaram por mil nomes, de Tao, de Shiva, de Alá, de Javé, de Olorum e de outros mais. Tudo se resume na palavra Deus. Quando se pronuncia com reverência este nome algo se move dentro do cérebro e do coração. Neurólogos e neurolinguistas identificaram o “ponto Deus” no cérebro. É aquele ponto que faz subir a frequência hertz dos neurônios como se tivesse recebido um impulso. Isto significa que no processo evolutivo surgiu um órgão interior pelo qual o ser humano capta a presença de Deus dentro do universo. Evidentemente, Deus não está apenas neste ponto do cérebro, mas em toda a vida e no inteiro universo. Entretanto, é a partir daquele ponto que nos habilitamos a captá-lo. Mais ainda. Somos capazes de dialogar com Ele, de elevar-lhe nossos súplicas, de render-lhe homenagem e de agradecer-lhe pelo dom da existência. Outras vezes, nada dizemos, apenas O sentimos silenciosos e contemplativos. É então que nosso coração se dilata às dimensões do universo e nos sentimos grandes como Deus ou percebemos que Deus se faz pequeno como nós. Trata-se de uma experiência de não-dualidade, de imersão no mistério sem nome, da fusão da amada com o Amado.

Espiritualidade não é apenas saber mas principalmente poder sentir tais dimensões do humano radical. O efeito é uma profunda e suave paz, paz que vem do Profundo. Desta paz espiritual a humanidade precisa com urgência. Ela é a fonte secreta que alimenta a paz cotidiana em todas as suas formas. Ela irrompe de dentro, irradia em todas as direções, qualifica as relações e toca o coração íntimo das pessoas de boa-vontade. Essa paz é feita de reverência, de respeito, de tolerância, de compreensão benevolente das limitações dos outros e da acolhida do Mistério do mundo. Ela alimenta o amor, o cuidado, a vontade de acolher e de ser acolhido, de compreender e de ser compreendido, de perdoar e de ser perdoado.

Num mundo conturbado como o nosso, nada há de mais sensato e nobre do que ancorar nossa busca da paz nesta dimensão espiritual.
Então a paz poderá florescer na Mãe Terra, na imensa comunidade de vida, nas relações entre as culturas e os povos e aquietará o coração humano, cansado de tanto buscar.

domingo, 8 de agosto de 2010

O que é a escatologia cristã?

A palavra “escatologia” é a composição de dois termos gregos: “escaton” e “logos”. Escaton literalmente quer dizer “último”, “definitivo”. E “logos” é o termo técnico que tem muitos sentidos, como palavra, verbo, intelecção, discurso sobre algo. Normalmente, o seu derivado “logia” significa “estudo sobre algo”. Assim, por exemplo, biologia é o estudo sobre as diversas formas de vida; enquanto a ecologia é o estudo sobre como todas as formas de vida se relacionam na casa comum do nossa planeta (em grego, oikos significa casa). No nosso caso, Escatologia seria então o estudo sobre o último e definitivo. Somente por esta definição, podemos perceber que o conceito de escatologia sofreu uma redução. Em vez de ser um estudo sobre o último e definitivo da nossa existência pessoal, coletiva e planetário, foi considerada como o estudo sobre o que vai acontecer depois da morte e do fim do mundo. Ou seja, a escatologia passou a ser o estudo sobre “as últimas coisas”, também chamados de “novíssimos”, a partir da expressão latina que lhe deu origem. Estranhamente, na nossa linguagem coloquial novíssimo tem um sentido bem diferente, é o superlativo de novo, quer dizer uma novidade cheia de surpresa, algo que está acontecendo agora ou acabou de se realizar. Mas, na teologia e no catecismo tradicionais, “novíssimos” aponta para “as últimas coisas que vão acontecer ainda”. E como tudo já estava muito claro e definido no catecismo, não há como esperar por novidades. As imagens que herdamos sobre céu, inferno, purgatório e segunda vinda de Jesus já estão tão cristalizadas, e aludem a coisas tão previsíveis, sem deixar espaço à gratuidade de Deus, que são “velhíssimas”.

Que tipo de estudo é a escatologia? Ela é uma disciplina que faz parte de um saber mais amplo, a teologia cristã. Não se trata de um estudo sobre a morte e o além morte, usando somente o saber de diferentes ciências, como a psicologia, a biologia, a medicina, ou física quântica. A contribuição destas ciências é importante para a teologia, mas esta fala sobre as realidades últimas e definitivas à luz da fé cristã. E a fé é algo vivo, que herdamos dos que vieram antes de nós, e assumimos como um compromisso pessoal e comunitário. Enquanto disciplina da teologia, a escatologia se constrói a partir da Bíblia, levando em conta a experiência de fé acumulada pelas Igrejas cristãs, que chamamos Tradição (com T maiúscula, para diferenciar das simples tradições), e as questões atuais colocadas pela humanidade, em diferentes culturas. A escatologia é uma interpretação cristã sobre o último e definitivo, para cada pessoa e para o mundo, articulando Bíblia, Tradição e Sinais dos Tempos.
Portanto, a escatologia, como uma parte da teologia, se propõe a refletir sobre o último e definitivo na vida humana, incluindo a morte e a vida eterna. Mas, que autoridade ela tem para fazer isto? Os descrentes ou desconfiados afirmam: “Vocês estão inventando coisas a partir da imaginação. Ninguém viajou para o além e depois voltou para contar como as coisas se passam lá”. Os Espíritas, que seguem Alan Kardec responderão com tranqüilidade: “Nós temos o método e o caminho para falar com os espíritos dos mortos. O que afirmamos sobre o além está testemunhado pelos espíritos que se comunicam conosco, através dos médiuns”. Os cristãos responderão de outro jeito: “Podemos falar sobre as realidades após a morte a partir daquilo que experimentamos na nossa vida de fé, hoje”. Citando Hebreus 11,1: “A fé é um modo de possuir desde agora o que se espera, um meio de conhecer realidades que ainda não se vêem”. Assim, falamos do Céu como comunhão plena com Deus não só porque a Bíblia nos promete, mas também porque, na fé, já experimentamos como a sintonia com Deus nos enche de paz e de alegria. No outro extremo, supomos a possibilidade real do inferno, não somente porque a Escritura alerta sobre isso, mas também porque também provamos como é ruim estar longe de Deus.

São Paulo, quando escreveu à comunidade de Corinto, na qual havia muitos membros convertidos de religiões marcadas pela cultura grega, fez um esforço enorme para explicar sobre a ressurreição dos mortos. Ele se serviu de imagens de seu tempo. Foi muito feliz, ao mostrar que entre esta vida e a vida eterna há uma relação de continuidade e também de ruptura. Sabemos que Deus levará à consumação aquilo que construímos aqui de forma imperfeita e provisória. Mas não podemos afirmar, de maneira matemática, como vai ser. É legítimo usar imagens, comparações, analogias. Sabendo que elas nos abrirão algo do futuro, mas deixarão também diante do radicalmente novo, da qual não podemos dizer ainda. Veja 1 Cor 15,37-38,42-44: O que você semeia não é a planta que deve nascer, mas um grão nu (..) Depois, Deus lhe dá corpo como quer, e a cada semente, de maneira própria (...) Acontece o mesmo com a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, ressuscita incorruptível (..) é semeado na fraqueza mas ressuscita cheio de força, é semeado corpo animal, mas ressuscita corpo espiritual”.

O cristão não deve falar sobre o após-morte como se estivesse fazendo uma reportagem antecipada para a mídia. Cuidado e respeito são necessários, para não dar margem à “ficção teológica”. A linguagem adequada para fazer escatologia é a da esperança, aberta para o futuro. Por isso, deve conciliar a precisão dos conceitos com a linguagem aberta e criativa da poesia, da analogia e das metáforas. Afirmará com a certeza da fé, mas também com a humildade da esperança, pois as realidades do após-morte estão muito além de nossa compreensão. Em parte falamos, em parte nos calamos em respeitoso silêncio e reverência ao mistério que nos ultrapassa.
Por hora, fiquemos com uma definição inicial sobre Escatologia Cristã: disciplina da teologia que estuda sobre o último e definitivo em todas as coisas, especialmente sobre a morte e o destino final do ser humano e do mundo.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Obras apostólicas. Com os olhos fixos em que?

Nos últimos anos, a Vida Religiosa experimentou mudanças significativas no tocante às “obras”, ou seja, instituições complexas criadas para traduzir o carisma, tais como: escolas, hospitais, obras sociais (creches, orfanatos e asilos), meios de comunicação e casas de retiro. O que aconteceu? Como enfrentar estas transformações no âmbito das obras, na sociedade plural? O fato leva as pessoas a dirigirem o olhar em várias direções. Algumas se fixam no passado, em atitude de nostalgia. Outras permanecem perplexas, com o olhar perdido. Por fim, há quem se põe a caminho, olhando para frente, e ensaia soluções.

O olhar retrospectivo
No passado, as obras tinham finalidades claras e inquestionáveis, tais como: (1) anunciar Jesus Cristo e ensinar a doutrina cristã, (2) exercitar a caridade, prestando assistência aos pobres e necessitados, (3) ajudar a formar cidadãos imbuídos da fé cristã, (4) garantir a sobrevivência dos religiosos(as) e de seus Institutos.
A gestão das obras era feita de forma caseira e amadora. Nem era preciso ser diferente, pois muitas outras coisas na sociedade aconteciam de maneira semelhante. Os religiosos(as) exerciam o máximo de funções nas obras: operacionais, de execução direta e de coordenação. Leigos e leigas tinham o mínimo possível de participação. Somente em caso de suplência e em algumas funções operacionais se recorria aos “de fora”.
Como o Estado não podia arcar com determinados serviços à população, delegava tarefas às congregações religiosas, em troca de algumas concessões. As obras tinham grande reconhecimento social e eclesial. O padre e o prefeito se orgulhavam em ter uma escola e um hospital católicos na sua cidade. Assim, criou-se a imagem de que as instituições católicas dos consagrados eram consistentes, sólidas e confiáveis. E a imagem correspondia à realidade dos fatos.
Do ponto de vista interno, as obras eram percebidas como a tradução perfeita do desejo dos fundadores(as). As comunidades religiosas habitavam dentro da obra, por vezes separadas por uma porta ou um corredor. Eram milícias a serviço das obras. O horário e o ritmo de vida das comunidades religiosas eram moldados a partir das exigências de suas obras.

Novos desafios
Nas últimas décadas, este quadro se alterou substancialmente. A força da tradição e as glórias do passado são insuficientes para manter as obras. Em todas as áreas onde antes atuavam unicamente instituições religiosas, entraram outros atores sociais. No campo de instituições de ensino, hospitais e comunicação chegaram poderosos concorrentes, com notório diferencial competitivo. Eles trouxeram o conceito comercial de “criar valor”.
Nas organizações antigas, importa manter as práticas e rotinas que deram certo no passado. Por isso, a inovação é vista com certa desconfiança. A instituição age de forma reativa. Somente realiza mudanças quando de se vê forçada a isso, a partir de uma provocação externa. Ora, seus concorrentes, ao contrário, são proativos e empreendedores.
Além disso, na mentalidade que rege as obras tradicionais, dá-se muita importância ao patrimônio material: terrenos, prédios, salas, mobiliários e, em menor grau, novos equipamentos. Ora, numa visão contemporânea de gestão, estas coisas somente contam se efetivamente geram resultados, de acordo com a missão da organização e a demanda de seu público-alvo. Caso contrário, constituirão custos, devido à constante depreciação, exigência de manutenção e de atualização.
A finalidade evangelizadora das obras entrou em crise e exige uma mudança de perspectiva, na medida em que a sociedade contemporânea se tornou plural também no âmbito religioso. Muitos profissionais da educação, da saúde e da área social que trabalham em instituições religiosas apresentam experiências religiosas e convicções que não se enquadram no perfil católico padrão. Qualquer espaço confessional, mantendo sua identidade, deve respeitar as crenças de seus colaboradores e interlocutores. E ainda há o desafio de evangelizar, como “boa nova significativa”, considerando a diversidade religiosa dos destinatários.

As obras mantidas por religiosos(as), inclusive as filantrópicas, vivem uma situação desafiadora. Com a expansão da sociedade urbana, aumentam as exigências de profissionalismo, simultaneamente em várias áreas: a específica de sua missão, a contábil, a administrativa, a financeira, a patrimonial, a de suprimentos, a de legislação e a de marketing. A busca de qualidade se torna um imperativo. Mas, por inércia, elas mantém características de gestão caseira e amadora. As decisões são tomadas sem um estudo sério sobre os elementos envolvidos. Além disso, deve-se lidar com uma questão delicada: toda instituição privada de prestação de serviços (como escola, hospital ou editora) é também um negócio. Seu público-alvo não somente é um potencial destinatário da evangelização, mas também sua clientela. E, como cliente, paga para receber determinado serviço, em crescente nível de exigência. A partir desta relação profissional e “comercial”, se estabelece uma teia de relações e de papéis correspondentes. Toda instituição do mercado precisa de equipe qualificada, constituída por gestores, técnicos, executores e grupo operacional. Deve manter com sua clientela uma relação estreita, visando satisfação e fidelização. Recorre a fornecedores adequados, que lhes vendem os insumos necessários. Enfrenta muitos concorrentes. Assume um posicionamento no mercado (perfil do produto e segmento). E, por fim, precisa cuidar da imagem e das relações com o público externo. Quanto trabalho e esforço!
As exigências de qualidade e profissionalismo também chegaram à área social. Quem atua hoje em projetos sócio-educativos não carrega o peso da gestão de um negócio, mas precisa desenvolver várias competências. Deve conhecer, com muitos olhares, seus interlocutores e compreender os múltiplos fatores que influenciam a vida dos pobres. Devido à necessidade de recursos e ao estabelecimento de parcerias, requer-se habilidade teórico-prática para elaborar, avaliar e aperfeiçoar projetos. Deve-se conhecer as políticas públicas e atuar decididamente nos organismos da sociedade civil, para garantir conquistas cidadãs. Uma equipe que atua em instituições sociais também precisa aprender a lidar com questões básicas de comunicação e marketing, contabilidade, legislação trabalhista e de voluntariado, planilha de custos, etc. Atua decididamente em redes com instituições similares, visando fortalecer a sociedade civil. E, além de tudo, desenvolve a criatividade, de forma a estimular o crescente protagonismo dos pobres. Quem diz que “é mais fácil trabalhar com os pobres”, está enganado. Há muitas demandas!

Instituições inovadoras e contemporaneidade
Pesquisadores da ciência da gestão, como Bateman e Snell, apontam algumas características básicas das organizações que crescem na sociedade atual, sejam filantrópicas ou empresariais. Elas teriam no mínimo os seguintes traços predominantes: conectividade, inovação, qualidade e velocidade.
Conectividade: instituições atualizadas captam e interpretam as tendências significativas da cultura contemporânea e as relacionam com seu público-alvo. Percebem as oportunidades inauditas e se sentem desafiadas por eles. E como as soluções são difíceis, a conectividade leva a estabelecer amplas redes de parcerias e alianças estratégicas. Hoje é impossível avançar sozinho(a).
Inovação: consiste em introduzir novos serviços ou produtos, antecipando-se para responder às demandas explícitas ou implícitas da sociedade. A inovação é o meio mais poderoso para crescer. Exige-se uma organização criativa, que invista em pesquisa e desenvolvimento e cultive a gestão do conhecimento. Um grupo inovador ousa arriscar, aprende rapidamente de quem faz bem; aperfeiçoa e recria o que aprendeu. E, sobretudo, cria as condições para colocar em prática os projetos inovadores.
Qualidade: diz respeito à excelência do serviço prestado, qualquer que seja seu público-alvo ou interlocutor. Um grupo organizado, que tem razão de ser e de atuar (missão), busca aperfeiçoamento contínuo naquilo que lhe é próprio. Isso vale tanto para uma associação popular, quanto para um grupo religioso ou uma empresa. Certamente, a qualidade está condicionada à infraestrutura disponível, aos recursos e à qualificação das pessoas que atuam na instituição. E a grande novidade reside nos grupos que conseguem dar saltos de qualidade, recorrendo à imaginação e à criatividade, com poucos recursos. Maximizam a relação custo x benefício.
Velocidade: Como o tempo atual está acelerado, exige-se das instituições que sejam rápidas para responder às demandas e necessidades de seu público-alvo e da sociedade. Aquela que demora a chegar, é preterida. Quem começa logo, tem o ônus do risco e o bônus de um diferencial competitivo.

Basta pensar nestas características e olhar para as obras das Congregações religiosas, para constatar que, na média geral, elas estão bem aquém do necessário. O grau de inovação é pequeno e se investe pouco em Pesquisa e Desenvolvimento. O saber operativo, que devia circular livremente e gerar novos conhecimentos, permanece represado devido à luta pelo poder e a uma mentalidade restritiva de “províncias” e “circunscrições”, dentro da mesma família religiosa. A lentidão e a baixa conectividade marcam sua cultura institucional.
Felizmente, há também fatores positivos. Várias províncias e Institutos buscam qualidade no serviço das obras, com perspectiva humanizadora, ao mesmo tempo que têm uma postura crítica em relação ao mercado. Crescem as redes, parcerias e alianças estratégicas entre congregações religiosas e outras organizações da sociedade civil. Com isso, estimula-se o aumento de conectividade. Aumenta-se o profissionalismo na gestão das organizações, sem perder o carisma. E sempre há riscos em manter o equilíbrio entre dimensões díspares e conflituosas.

Obras e carisma
Para alguns, a crise das obras se resolve à medida que a instituição religiosa se moderniza, assume feições profissionais, ganha visibilidade, fortalece sua identidade e imagem, fecha obras deficitárias, assume novas obras em contextos economicamente mais viáveis, melhora os procedimentos internos, aperfeiçoa os mecanismos de controle, assume uma visão estratégica voltada para o futuro, estabelece metas com indicadores e se lança em processo de aperfeiçoamento contínuo. Ora, tudo isso (e outras coisas mais) faz parte do processo de gestão das obras, mas é insuficiente, se não se leva em conta o componente do carisma e da espiritualidade.
As instituições de prestação de serviços dos religiosos, como escolas, hospitais e editoras, não nasceram para ser uma empresa a mais no mercado. Elas surgiram com a finalidade de evangelizar e promover o ser humano, em resposta a um apelo do Espírito, captado e interpretado pelos fundadores(as) como tal. Ao mesmo tempo, elas representavam um exercício de laicidade da vida consagrada, de estar no mundo de uma forma própria, trabalhando e garantindo seu sustento material. Os consagrados(as) não são anjos. Precisam de meios para sobreviver e ampliar sua missão.
Constata-se ainda que determinadas obras estão muito distantes das intuições básicas do fundador(a). Então, não basta que elas tenham sucesso e sejam bem geridas. Para a vitalidade do Instituto, necessitam estar alinhadas ao carisma fundacional, lido à luz dos Sinais dos Tempos. Não se trata de copiar o que fundador fez, pois as condições históricas mudaram. Mas é preciso se perguntar, o que ele(a) faria hoje, se estivesse começando sua empreitada? Quais seriam seus destinatários, e em que sentido inovaria na missão? O que escolheria visando o sustento material, o que promoveria de forma gratuita, não visando lucro...
Muitos Institutos nasceram para atender aos mais pobres e necessitados. Tal questão salta aos olhos, quando se folheia a vida dos fundadores ou se lê as Constituições. É verdade que o pluralismo contemporâneo favorece a adoção de um leque amplo de obras, destinados a diferentes públicos: ricos e pobres, gente da cidade e do campo, escola e obras sociais, hospitais e experiências de saúde popular, educação privada e obras conveniadas com o poder público. Mas cada Instituto deve privilegiar algumas presenças que sinalizam de forma clara a prioridade do carisma fundacional, mesmo que mantenha algumas obras tradicionais. Para isso, é preciso superar o apego às obras. Elas são expressões históricas do carisma. E como tal, precisam ser revisitadas e revistas.
Deve-se afirmar sem medo que a vitalidade do carisma vai além das obras. Em muitos casos, será necessário constituir comunidades religiosas sem obras, atuando junto aos pobres em cidades pequenas, aldeamentos indígenas, periferias das metrópoles, comunidades terapêuticas, população de rua, etc. Hoje há certo consenso a respeito da pluralidade das presenças apostólicas, contemplando não somente as obras institucionais, mas também outras iniciativas, como as comunidades inseridas e outros projetos “nas fronteiras”. Mas, na hora de tomar as decisões, o peso da história já construída é maior...

Para um “discernimento das obras”
A grande parte dos Institutos apresenta o mesmo quadro preocupante: aumento lento e irreversível da média de idade, número de novas vocações menor do que a soma de mortes e saídas. Esta conjugação de fatores tem um efeito multiplicador. Hoje há províncias religiosas no qual o número de obras é inadequado para a quantidade de pessoas que estão na vida ativa. E algumas obras são deficitárias do ponto de vista econômico e caminham para o fechamento. Outras exigem uma vultuosa quantia para atualização, no que diz respeito a prédios, equipamentos, tecnologia e formação de pessoas. E outras ainda, do ponto de vista social e pastoral, perderam parte do vigor original.
Ainda é tempo de mudança! Ela deve realizada enquanto as pessoas tem energia vital e disposição para arcar com os riscos. Se isso não acontecer, a atual vida consagrada caminhará para a morte. Uma morte lenta, muito lenta e inexorável. Tal situação já é perceptível da Europa...
A reestruturação das obras faz parte do processo de renovação da Vida Religiosa. Porém, renovar a Vida Consagrada trata-se de algo mais profundo do que fechar, redirecionar ou abrir obras. Toca na espiritualidade, na forma de orar, nas relações fraternas e sororais, na missão, na vivência da consagração. Todos esses elementos juntos configuram o grau de atratividade da Vida Religiosa. Ou seja: o que ela significa e transmite para a Igreja e a sociedade, o que ela pode atrair as novas gerações.
A reestruturação das obras inclui um longo processo, com vários elementos. Citaremos brevemente alguns deles.
*Análise da situação da província ou Instituto, contemplando o número efetivo de consagrados(as) na ativa, tipo de obras existentes, relação das obras com o carisma, número e tipo de comunidades religiosas, média de faixa etária, etc.. Esta análise complexa deve contar com assessoria externa, com a colaboração de profissionais leigos, de quem tem o olhar da Vida Consagrada, além de levar em contar a contribuição das comunidades religiosas.
*Processo de discernimento das obras: quais devem ser fechadas, quais serão revitalizadas, que novas iniciativas serão tomadas.
*Formação de leigos(as) para a gestão das obras.
*Preparação profissional de alguns consagrados(as) para gestão de obras.

Alguns institutos religiosos já promoveram processos de reestruturação de obras. Como é inevitável, houve acertos e erros. Essa experiência deve ser partilhada com outros, que estão iniciando agora. Importa colocar-se a caminho, em busca de fidelidade criativa ou da criatividade fiel. Com os olhos fixos em Jesus e no futuro. Peregrinos(as) e aprendizes!

Ir. Afonso Murad
Publicado originalmente no Caderno preparatório para a Assembléia Geral da CRB, julho de 2010.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Teologia da Graça: questões para estudar

Termino na próxima semana o curso de Antropologia Teológica, no ISTA. Gostei muito de trabalhar com o tema "criação", "graça" e "salvação", relacionandno-os o conjunto da teologia e da existência cristã. A turma se envolveu muito, com bom humor e desejo de aprender.
Partilho com os alunos as questões da avaliação, para que preparem com antecedência. Para quem não acompanhou o curso, um aviso: não se espante com a densidade e complexidade das perguntas!
Para os aprendizes de teologia, desejo bom exercício de discutir, pensar e refletir sobre a fé.
Questões:

1. Em que sentido dizemos que “a salvação nos vem pelo nascimento, pela vida, pela morte e pela ressurreição de Jesus”? O que é especificamente salvador em cada etapa?
2. Conceitue o que é “graça” e “salvação”, recorrendo a alguns textos da bíblia e analogias da existência humana.
3. Tema: relação natureza x graça. Mostre como apareceu a expressão “sobrenatural”, o consequente extrinsecismo e suas conseqüências para a vida cristã. Por fim, como se resolveu esta questão, com a ajuda da teologia de K. Rahner.
4. Tema: “predestinação”. Mostre sua origem e o contexto na bíblia. Como foi interpretada por Agostinho e Calvino? Como responder a esta questão hoje?
5. Tema: relação entre Graça e Liberdade. Explique a origem da polêmica pelagiana. Mostre como a Igreja respondeu a este desafio na história. Por fim, como hoje se explica a relação entre Liberdade Profunda e Graça.
6. Mostre como surgiu o tema da “Justificação pela fé”, em Lutero. Apresente a resposta de Trento e o consenso entre a Igreja católica e a luterana. O que significa “justificação objetiva e subjetiva” e a atualidade desta questão.
7. Explique: “a prática do amor solidário, a luta pela justiça social e pela sustentabilidade ecológica são expressões privilegiadas da graça divina acontecendo na vida humana”.
8. Como articular corretamente a afirmação sobre a “salvação em Cristo” com o valor salvífico das outras religiões?
9. Em que sentido pode-se afirmar que alguém faz uma “experiência de Deus”? Até que ponto um cristão pode sustentar a certeza de que “está salvo”?
10. O que o curso acrescentou à sua vida cristã? E à sua prática pastoral?

terça-feira, 15 de junho de 2010

Martírio e luta pela justiça

“Vi uma grande multidão que ninguém podia contar. Estavam todos diante do trono e do Cordeiro. Vestiam vestes brancas e traziam palmas na mão (..) Quem são e de onde vieram esses que estão vestidos com roupas brancas? (..) São os que estão chegando da grande tribulação. Eles lavaram e alvejaram suas roupas no sangue do cordeiro” (Ap 6,9.14)

Compreendi este texto, de forma original, quando visitei a casa onde morou Dom Oscar Romero, bispo de San Salvador, assassinado por um atirador de elite, a serviço do governo militar que dominava o país. Lá se vê sua camisa branca, perfurada pela bala, e manchada de sangue. Romero era um homem do bem. Começou sua missão de bispo de forma ingênua. À medida que conheceu mais a dura realidade de seu povo, cresceu dentro de si a indignação e a consciência que a fé cristã não dizia respeito somente aos indivíduos e às suas questões existenciais. Romero percebeu os mecanismos sociais que geravam a pobreza e a dominação política. Compreendeu o jogo das ideologias. Meteu-se na luta política como homem de Deus, buscando o diálogo e os consensos possíveis. Nas homilias de Romero, gravadas e transmitidas pelo rádio, transparecem um senso profético impressionante. Não são um mero discurso político ou de conselhos piedosos sem sabor. E sim palavras apaixonadas e lúcidas, críticas e esperançadas, contextualizadas e com teor espiritual e ético.

No final da década de setenta, conheci Elói Ferreira da Silva. Homem simples, da roça, líder de círculo bíblico na cidade de São Francisco, no Norte de Minas. Vivia com a mulher e dez filhos, como posseiro em terras devolutas. Tornou-se um representante das lutas populares da região. Impressionava-me sua serenidade, alegria, e muita fé em Deus. Ele via os fatos cotidianos e também sua luta social com aquele olhar de quem crê, confia e espera no Senhor. Mas não estava parado, esperando as coisas acontecerem. Empenhou-se com seus companheiros na luta pela posse da terra, grande dom de Deus para seus filhos, como dizia ele. Seu Elói foi barbaramente assassinado, a mando dos que almejam se apropriar da área para cultivar eucalipto. Passados tantos anos, ainda me recordo de seu sorriso aberto, mesclado com o imenso bigode.

Como Dom Romero e Elói, milhares de homens e mulheres nos últimos anos deram a vida pela causa da justiça e do Evangelho na América Latina e no Caribe.
Uma das feições originais do cristianismo latino-americanos dos últimos anos consiste em recuperar a dimensão social da fé. Presente fortemente no livro do Deuteronômio, nos livros proféticos, em vários Salmos e nos evangelhos sinóticos, a dimensão social da fé se diluiu nos primeiros séculos e praticamente perdeu relevância, quando a Igreja se tornou religião do império romano.
Sempre houve mártires na Igreja, no correr da história, embora com diferente intensidade. Nos últimos séculos, o martírio assumiu uma face predominantemente confessional, como defesa de uma religião até a morte heróica. No nosso continente, a esmagadora maioria dos mártires e testemunhas de vida cristã, canonizadas ou não, associou à sua causa religiosa um ideal humanitário, social e ecológico. Não se apresentam como mártires de uma determinada religião, e sim como símbolos de uma nova humanidade possível, para além das fronteiras culturais, étnicas e religiosas. Esses mártires são reconhecidos por todos aqueles que vivem irmanados nas mesmas causas, mesmo que com diferentes olhares e perspectivas. Símbolos vivos de um sonho ainda não realizado, mas necessário. Encontro da graça divina com a resposta humana. Convergência do apelo libertador de Deus, com o engajamento pessoal, comunitário e estrutural.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

O que é a cultura light?

É possível formar para compromissos duradouroas, numa cultura light? Em que condições e com qual grau de certeza? Que atitudes e estruturas são necessárias para isso acontecer? Estas perguntas são decisivas para a educação e a evangelização. Vamos começar caracterizando a cultura light. No próximo artigo, mostraremos que elementos favorecem o desenvolvimento do homem e da mulher light. Por fim, traçaremos algumas pistas para responder à questão inicial.

A cultura “light”
A rigor, não existe uma cultura “light”, enquanto sistema elaborado de significações, configurado por um grupo humano e identificável a partir de matrizes étnicas, sociais, de gênero ou geracional. O termo “light” serve mais como uma categoria, uma aproximação conceitual. Ele dá conta de explicar uma forma de conceber o mundo e de se comportar, que está presente em diferentes grupos na sociedade contemporânea, com intensidade também distinta. A expressão “light” é uma imagem, uma analogia, que reúne algumas características do que se convencionou chamar de cultura “pós-moderna” ou “modernidade líquida” (Zygmunt Bauman). A expressão remonta a um famoso livro de Henrique Rojas, denominado El hombre light (Ed Temas de Hoy, Madrid, 1992) atualmente na 20 edição.
“Light” tem, em inglês, muitos sentidos. O primeiro é o substantivo “luz”. Daí deriva o adjetivo que significa “claro”, como por exemplo, “light blue” (azul claro). O termo ganhou importância e novo significado na sociedade atual devido à associação com alimentos de baixo teor calórico. Basta entrar no supermercado ou na padaria, para encontrar vários produtos “light”. Eles apresentam, no mínimo, a redução de 25% de determinado nutriente que fornece energia (carboidrato, gordura e proteína), em comparação com o alimento convencional. O “diet”, por sua vez, diz respeito a alimentos e bebidas completamente sem açúcar ou gordura, originalmente destinados a quem tem alguma limitação na saúde, como diabete ou colesterol elevado. As pessoas consomem cada vez mais produtos “lights” e “diets”, para manter o peso, não engordar e conservar o padrão estético que se determinou como ideal. Alimentam a ilusão de que podem comer e beber à vontade, fruir do prazer (sabores e odores), sem pagar o preço de engordar. Soa como uma solução mágica!

A partir desta referência, no imaginário atual “light” se associa a “leveza”, não somente física, mas também psicológica e comportamental. Uma pessoa light rejeitaria a rigidez, ou seja, aquilo que é duro (hard) e pesado (heavy). Ela estaria no âmbito do que é seguro, sem riscos.
Segundo Wilmar L. Barth, no homem light, “tudo está sem calorias, sem gosto ou interesse. A essência das coisas não importa, só é quente o superficial, e a vida pode ser comparada a um coquetel, onde tudo pode ser experimentado, mas tudo está desvalorizado. Centrado em aproveitar bem o momento e consumir, em se interessar por tudo e, ao mesmo tempo, por não se comprometer com nada, o homem light ajeita tudo. Para ele, tudo é transitório, passageiro e assim até a democracia e a vida conjugal se tornam lights. O lema é não exigir muito e alcançar uma tolerância absoluta. Não existem desafios, nem metas históricas e grandes ideais, nem um esforço ou luta contra si próprio (..) Como não tem critérios sólidos, o homem light é superficial e aceita tudo. Geralmente não tem um projeto de vida e lhe interessa possuir e consumir loucamente”. Fabrica sua verdade de acordo com preferências pessoais, escolhendo o que gosta e rejeitando o que não lhe apetece.
E conclui o autor, a respeito do homem e da mulher light: “sua ideologia é o pragmatismo. Sua norma de conduta é a vigência social, as vantagens que leva, o que está na moda (..) Tudo é suave, ligeiro, sem riscos; somente faz algo com garantia. Em sua vida, não há rebeliões, pois a moral se converteu numa ética de regras de urbanidade ou mera atitude estética” (W. Barth, O homem pós-moderno, religião e ética, in: Teocomunicação, v.37, n.155, março 2007, p. 91s).

Cecília Benetrix resume assim as características do “homem light”, a partir de E. Rojas: “Es esa persona que carece de esencia, que es consumista, relativista pues es un hombre sin referentes, sin puntos de apoyo, envilecido, rebajado, convertido en un ser libre que se mueve pero no sabe a dónde va, un hombre que es veleta. Es vacío, y vive em la era del vacío, lo único que le interesa es su ascenso social y el placer a toda costa, su fin es despertar admiración o envidia. Adquiere gran cantidad de información que le venden los médios pero no es capaz de hacer una síntesis de aquello que percibe y en consecuencia se há ido convertiendo en un sujeto trivial que acepta todo y es muy manejable. Posee uma decadencia moral debido al hedonismo (placer sobre todo) y a la permisividad. Gracias a estos dos conceptos el hombre light se evade a si mismo y se sumerge en las sensaciones más sofisticadas contemplando la vida como um goce ilimitado”.

Para evitar análises pessimistas, é importante ressaltar alguns traços da cultura light na sua origem. Eles são ambivalentes, e talvez o problema seja a forma unilateral como se manifestam. Há um contexto que lhes deu origem e favorece sua manifestação. Por exemplo, na sociedade contemporânea, a luta pela sobrevivência devora grande parte da energia vital das pessoas. Cada vez mais, não se tem segurança a respeito do futuro profissional. O ambiente de trabalho, devido ao clima de constante competição no mercado, é tão estressante e exigente, que, como forma de compensação e alívio, as pessoas tendem a sonhar com a situação oposta, na qual possam provar a leveza, a ausência de cobranças, a fruição e o prazer. Mesmo que isso não seja real para a grande maioria, permanece como desejo e ideal.
Outro fato elucidativo: na sociedade midiática, da imagem e da simulação, só existe o que aparece. O estético saiu das Igrejas antigas, dos museus e das galerias de arte e invadiu o cotidiano. E isto é bom, pois significou uma forma de democratização. É compreensível que as pessoas estejam mais sensíveis ao aparente e se extasiem com o belo. A questão é quando o estético substitui o ético. Passa a ser considerado bom aquilo que é produzido, de forma artificial, como beleza, a serviço do consumo.

Valores da cultura light
Com espírito de fé, descobrir-se-á nos “Sinais dos Tempos” do homem e da mulher light não somente as ameaças, mas também as oportunidades para a humanização e o Reino de Deus. Isso exigirá, ao menos, uma disposição das pessoas para avaliar seus hábitos e posturas, investir no autoconhecimento e querer crescer.
Que valores estão implícitos na cultura light, e poderão ser positivos, se forem desenvolvidos em perspectiva humanizadora e comunitária, ou seja, voltados para a evolução da humanidade e compreendidos de forma coletiva, para além do indivíduo? Citemos alguns.
*Leveza: consiste em cultivar a gratuidade, a alegria, o contentamento, e o senso de humor, como elementos decisivos da vida, em contraposição ao pessimismo e ao perfeccionismo. A leveza é um contraponto às exigências demasiadas do mercado, baseado na competição e nos resultados.
*Flexibilidade: a pessoa aprende a relativizar o que antes parecia intocável e inquestionável. Critica a rigidez dos códigos de comportamento, especialmente das religiões tradicionais, e descobre o valor do diálogo.
*Cotidianidade: Há um desejo de simplesmente viver o hoje, sem excesso de preocupação com o futuro.
*Estética: Desenvolve-se a sensibilidade ao belo, em várias instâncias. Desde as embalagens, até o corpo humano, contemplando também o design da casa e da cidade. Abre-se a oportunidade de uma nova síntese entre a bondade e beleza, se a aparência é uma porta de entrada para o ser-que-se-manifesta.
*Corporeidade: o respeito e a valorização do corpo. Critica a violência física contra os fracos, especialmente as crianças e as mulheres. Após séculos de negação, abre-se a possibilidade de uma visão unificadora de corpo-espírito. O corpo é expressão carnal da pessoa e de seu mistério.

No próximo artigo, apontaremos a ambiguidade da "pessoa light" e veremos como ela se manifesta em grupos religiosos.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Documento da CNBB sobre CEBs

A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), ao final de sua Assembléia Anual, aprovou o documento sobre as CEBs. Vale a pena ler e divulgar.

Introdução“As Comunidades Eclesiais de Base”, dizíamos em 1982, constituem “em nosso país, uma realidade que expressa um dos traços mais dinâmicos da vida da Igreja (...)” (Comunidades Eclesiais de Base na Igreja do Brasil, CNBB, doc. 25,1). Após a Conferência de Aparecida (2007) e o 12º Intereclesial (Porto Velho-2009), queremos oferecer a todos os nossos irmãos e irmãs uma mensagem de animação, embora breve, para a caminhada de nossas CEBs.
Queremos reafirmar que elas continuam sendo um “sinal da vitalidade da Igreja” (RM 51). Os discípulos e as discípulas de Cristo nelas se reúnem para uma atenta escuta da Palavra de Deus, para a busca de relações mais fraternas, para celebrar os mistérios cristãos em sua vida e para assumir o compromisso de transformação da sociedade. Além disso, como afirma Medellín, as comunidades de base são “o primeiro e fundamental núcleo eclesial (...), célula inicial da estrutura eclesial e foco de evangelização e, atualmente, fator primordial da promoção humana (...)” (Medellín 15).
Por isso, “Como pastores, atentos à vida da Igreja em nossa sociedade, queremos olhá-las com carinho, estar à sua escuta e tentar descobrir através de sua vida, tão intimamente ligada à história do povo no qual elas estão inseridas, o caminho que se abre diante delas para o futuro”. (CNBB 25,5)

Os desafios postos às CEBs hoje: a sociabilidade básica no clima cultural contemporâneo
Com as grandes mudanças que estão acontecendo no mundo inteiro e em nosso país, as CEBs enfrentam hoje novos desafios: numa sociedade globalizada e urbanizada, como viver em comunidade? Nascidas num contexto ainda em grande parte rural, serão capazes de se adaptar aos centros urbanos, que têm um ritmo de vida diferente e são caracterizados por uma realidade plural? Dentro desse contexto, há outro desafio: como transmitir às novas gerações as experiências e valores das gerações anteriores, inclusive a fé e o modo de vivê-la? Só uma Igreja com diferentes jeitos de viver a mesma Fé será capaz de dialogar relevantemente com a sociedade contemporânea.
O século XX foi, sem dúvida, o século da globalização. Suas consequências para a vida cotidiana são tantas que hoje se fala que o mundo vive não mais uma época de mudanças, mas “uma mudança de época, cujo nível mais profundo é o cultural” (DAp 44). De fato, “a ciência e a técnica quando colocadas exclusivamente a serviço do mercado (...) criam uma nova visão da realidade” (DAp 45), mas isso não significa um passo em direção ao desenvolvimento integral proposto pela encíclica Populorum progressio e reafirmado pelo Papa Bento XVI em Caritas in Veritate, porque a lógica do mercado corrói a estrutura de sociabilidade básica que se expressa nas relações de tipo comunitário. À medida que ele avança, expulsa as relações de cooperação e solidariedade e introduz relações de competição nas quais o mais forte é quem leva vantagem.
Desta forma, é preciso valorizar as experiências de sociabilidade básica: as relações fundadas na gratuidade que se expressa na dinâmica de oferecer-receber-retribuir. O cultivo da reciprocidade tem como espaço primeiro aquele onde a vizinhança territorial é importante para a vida cotidiana, como em áreas rurais, bairros de periferia e favelas. É a solidariedade entre vizinhos – melhor dizendo, entre vizinhas – que assegura o cuidado com crianças, idosos e doentes, por exemplo. Não por acaso, esses espaços periféricos favorecem o desenvolvimento de associações de vizinhança e movimentos que reivindicam melhorias de equipamento urbano, bem como das próprias Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). São as relações de reciprocidade que, promovendo a solidariedade que é a força dos pobres e pequenos, permite que se diga que "gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares pouco importantes, consegue mudanças extraordinárias".

O percurso histórico das CEBs no BrasilA experiência das CEBs não surgiu de um planejamento prévio, mas de um impulso renovador, como um sopro do Espírito, já presente na Igreja no Brasil. Esse impulso renovador se manifesta de forma crescente nos anos 50 e 60 do século 20. Na verdade, os tempos se tornaram maduros para uma nova consciência histórica e eclesial: primeiro, pela emergência de um novo sujeito social na sociedade brasileira, o sujeito popular, que ansiava à participação; segundo, pela emergência de um novo sujeito eclesial, portador de uma nova consciência na Igreja. Ele ansiava participar ativa e corresponsavelmente da vida e da missão da Igreja. Esse sujeito provoca novas descobertas e conversões pastorais (CNBB 25,7).
Nelas se revigoravam ou restauravam as relações de reciprocidade, de modo a favorecer a reconstrução das estruturas da vida cotidiana, do mundo da vida, em um contexto social adverso. A interação entre a CEB enquanto organismo eclesial e a comunidade local de vizinhos é uma das grandes contribuições da Igreja à conquista dos direitos de cidadania em nosso País. Ao acolher pastoralmente a população rural ou migrante em capelas e salões improvisados nos quais elas se sentissem “em casa”, a Igreja lhes ofereceu uma possibilidade de organizar-se autonomamente, quando as empresas e os poderes públicos só viam nela o potencial de mão-de-obra a ser empregada no processo de industrialização.

A experiência dos Intereclesiais
Os Encontros Intereclesiais das CEBs são patrimônio teológico e pastoral da Igreja no Brasil. Desde a realização do primeiro, em 1975 (Vitória – ES), reúnem diversas dioceses para troca de experiência e reflexão teológica e pastoral acerca da caminhada das CEBs. Foram doze encontros nacionais, diversos encontros de preparação em várias instâncias (paróquias, dioceses, regionais) e, desde a realização do 8º Intereclesial ocorrido em Santa Maria – RS (1992), são realizados seminários de preparação e aprofundamento dos temas ligados ao encontro.
Manifestação visível da eclesialidade das CEBs, os Encontros Intereclesiais congregam bispos, religiosos e religiosas, presbíteros, assessores e assessoras, animadores e animadoras de comunidades, bem como convidados de outras igrejas cristãs e tradições religiosas. Neles se expressa a comunhão entre os fiéis e seus pastores.

Espiritualidade e vivência eucarística
“O Concílio Vaticano II, eminentemente pastoral, provocou um grande impacto na Igreja. Suas grandes idéias-chaves trouxeram a fundamentação teológica para a intuição, já sentida na prática, de que a renovação pastoral deve se fazer a partir da renovação da vida comunitária e de que a comunidade deve se tornar instrumento de evangelização”. (CNBB 25,11)
A exigência do Vaticano II é de razão estritamente teológica, de ordem trinitária. A essência íntima de Deus não é a solidão, mas a comunhão de três divinas Pessoas. A comunhão – koinonia, communio – constitui a realidade e a categoria fundamental que permeia todos os seres e que melhor traduz a presença do Deus-Trindade no mundo. É a comunhão que faz a Igreja ser “comunidade de fiéis”. Por isso, o Vaticano II faz derivar a união do Povo de Deus da unidade que vigora entre as três divinas Pessoas (LG 4).
A Trindade nos coloca, desde o início, no coração do mistério de comunhão. O Papa João Paulo II, falando aos bispos em Puebla, em 28 de janeiro de 1979, proclamou: “Nosso Deus em seu mistério mais íntimo não é uma solidão, mas uma família... e a essência da família é o amor”. A comunhão e a comunidade devem estar presentes em todas as manifestações humanas e em todas as concretizações eclesiais.
Por isso mesmo, a Eucaristia está no centro da vida de nossas comunidades de base. É o sacramento que expressa comunhão e participação de todos e todas, como numa grande família, ao redor da Mesa do Pai. Há comunidades que recebem a comunhão eucarística graças a presença do Santíssimo no local ou pelo serviço de um ministro extraordinário da sagrada comunhão. Como nossas CEBs, em sua maioria, “não têm oportunidade de participar da Eucaristia dominical”, por falta de ministros ordenados, “elas podem alimentar seu já admirável espírito missionário participando da ‘celebração dominical da Palavra’, que faz presente o mistério pascal no amor que congrega (cf. 1 Jo 3, 14), na Palavra acolhida (cf. Jo 5, 24-25) e na oração comunitária (cf. Mt 18,20)” (DAp 253).
A realidade das CEBs se expressa na liturgia e também na diaconia e na profecia. A diaconia educa, cura as feridas, multiplica e distribui o pão e chama para a solidariedade e a comunhão. A profecia anuncia o desígnio de Deus e denuncia os abusos, a mentira, a injustiça, a exploração e exige a conversão. Por isso, sofre perseguição, difamação, morte.
Temos duas testemunhas recentes desse duplo ministério dos discípulos e discípulas de Jesus Cristo: Dra. Zilda Arns e Irmã Dorothy Stang. Há muito conhecidas por nossas comunidades pobres pelo Brasil afora, elas inspiraram a ação das CEBs. Elas entregaram a vida e nos deixaram seu testemunho de fé e amor aos pobres, fracos, desamparados e discriminados.
Esta espiritualidade também possibilitou a produção de uma rica manifestação artística em nossas comunidades – músicas, poesias, pinturas, símbolos – típicos da prática religiosa e cultural de nosso povo, e que também são instrumentos de evangelização e de missão.

Vivência e Anúncio da Palavra de Deus e o Testemunho de fé“A Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). A acolhida da Palavra de Deus e a vivência comunitária da fé são indissociáveis nas CEBs. A Bíblia faz parte do dia-a-dia da comunidade, estando presente nos grupos e pastorais, nas liturgias e na formação, na reza e nas ações que visam superar as desigualdades e injustiças da sociedade brasileira.
São espaços privilegiados de leitura bíblica nas CEBs os círculos bíblicos e grupos de reflexão. Neles o povo se coloca como sujeito eclesial, assume seu lugar na comunidade e na sociedade. O protagonismo dos leigos nas CEBs é expressão viva de uma Igreja que se renova animada pelo Espírito Santo, é também um sinal de que no discipulado estão surgindo novos ministérios e serviços.
“O ministério da Palavra exige o ministério da catequese a todos porque ‘fortalece a conversão inicial e permite que os discípulos missionários possam perseverar na vida cristã e na missão em meio ao mundo que os desafia’” (DGAE 64; DAp 278c). A vida em comunidade já é uma forma de catequese. Ela predispõe para o aprofundamento da fé e da vida cristã por meio do ministério da catequese e também pelo testemunho fraterno de seus membros.

Solidariedade e serviço
Alimentadas pela Palavra de Deus e pela vivência de comunhão, as CEBs promovem solidariedade e serviço. Reunindo pessoas humildes, as CEBs ajudam a Igreja a estar mais comprometida com a vida e o sofrimento dos pobres, como fez Jesus. Elas manifestam, mais claramente, que “o serviço dos pobres é medida privilegiada, embora não exclusiva, do seguimento de Cristo” (DP 1145).
Mais ainda, o surgimento das CEBs, junto com o compromisso com os mais necessitados, ajudou a Igreja a “descobrir o potencial evangelizador dos pobres”, primeiro, porque interpelam a Igreja, chamando-a à conversão; segundo, porque “realizam em sua vida os valores evangélicos da solidariedade, serviço, simplicidade e disponibilidade para acolher o dom de Deus” (DP 1147). As vocações religiosas e sacerdotais despertadas pelas CEBs sinalizam vitalidade espiritual, comunhão eclesial e um novo estímulo de consagração a Deus.

A formação dos discípulos missionários
Na sua experiência já amadurecida, as CEBs querem ser Igreja como o Concílio Vaticano II desejou: uma Igreja toda ministerial a serviço do Reino de Deus. A formação do discípulo missionário começa dentro delas pela experiência de um encontro feliz e alegre com a pessoa de Jesus, sua vida e seu destino. Como Jesus convocou discípulos e discípulas para estarem com ele, do mesmo modo, ele convoca também hoje discípulos e discípulas para estarem com ele e dele aprenderem o amor ao Pai, a fidelidade ao Espírito e o compromisso para a transformação do mundo em mundo de irmãos e irmãs.
Por sua capacidade de cuidar da formação da própria comunidade e de olhar, com compaixão, a realidade, as CEBs podem e devem ser cada vez mais escolas que ajudam “a formar cristãos comprometidos com sua fé; discípulos e missionários do Senhor, como o testemunha a entrega generosa, até derramar o sangue, de muitos de seus membros” (DAp 178).

A participação nos movimentos sociais, de cidadania, de defesa do meio ambiente em vista da construção do Reino de DeusNo que diz respeito à relação das CEBs com a dimensão sociopolítica da evangelização, o Sínodo sobre A Justiça no Mundo, de 1971, já tinha afirmado que “a ação pela justiça e a participação na transformação do mundo nos aparecem claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, isto é, da missão da Igreja pela redenção do gênero humano e a libertação de toda situação de opressão” (introd.). Em vista disso, a Igreja no Brasil exorta as CEBs e demais comunidades eclesiais a se manterem fiéis à própria fé, no conteúdo e nos métodos, na busca da libertação plena, superando a tentação “de reduzir a missão da Igreja às dimensões de um projeto puramente temporal” (CNBB 25,64ss; Cf. EN 32).
Em relação à aproximação das CEBs com os movimentos populares na luta pela justiça, o documento 25 da CNBB afirmava que elas “não podem arrogar-se o monopólio do Reino de Deus”. Na verdade, a CEB deve tomar consciência de que, “como Igreja, é sinal e instrumento do Reino, é aquela pequena porção do povo de Deus onde a Palavra de Deus é acolhida e celebrada nos sacramentos ... sobretudo na Eucaristia” (70ss). As CEBs buscam, sim, a “colaboração fraterna com pessoas e grupos que lutam pelos mesmos valores” (73).
As CEBs têm despertado em muitos dos seus membros a espiritualidade do cuidado para com a vida dos seres humanos, de todas as formas de vida e a vida do Planeta Terra. A espiritualidade do cuidado tem motivado o surgimento de gestos e atitudes éticas de respeito, de veneração, de ternura, de cooperação solidária, de parceria, que promovam a inclusão de todos e de tudo no mistério da vida.
As CEBs promovem a participação ativa de seus membros nos grupos de economia popular solidária, resgatando o sentido originário da economia como a atividade destinada a garantir a base material da vida pessoal, familiar, social e espiritual. Contribui assim para que o trabalho humano, além de ser o lugar de edificação da dignidade humana e promoção da justiça social, seja também responsável pela promoção do desenvolvimento sustentável.
Espírito de abertura ecumênica e diálogo interreligioso
Uma das dimensões da espiritualidade cultivadas pelas CEBs é a do diálogo ecumênico e interreligioso, que se dá pela abertura ao mundo do outro, promovendo a unidade na diversidade e buscando as semelhanças na diferença. Esta espiritualidade dialogal tem sido assumida pelas CEBs como uma missão de fraternidade cristã, numa atitude de profundo respeito às demais manifestações religiosas, em busca da comunhão universal. Essa espiritualidade nasce do desejo expresso por Jesus: "Que todos sejam um!" (Jo 17,21)

Formação de rede de comunidades
Os membros das CEBs são discípulos de Cristo e ajudam a formar outras comunidades. Em meio a grandes extensões geográficas e populacionais, a comunidade eclesial de base requer que as relações sejam de fraternidade, partilha de vida, de bens e da própria experiência de fé. Ela deve provocar um encontro permanente com a Palavra de Deus e celebrar na liturgia, na alegria e na festa, a salvação que Jesus Cristo nos trouxe.
A experiência da fé e da participação faz amadurecer a comunidade eclesial de base, e lhe confere características próprias de modo a levá-la a um relacionamento fraterno de igualdade com as demais comunidades pertencentes à mesma paróquia. Com isso, a matriz-paroquial ganha maior relevância pastoral na medida em que passa a exercer a função de articuladora das comunidades.
Exortamos que a paróquia procure se transformar em “rede de comunidades e grupos, capazes de se articular conseguindo que seus membros se sintam realmente discípulos missionários de Jesus Cristo em comunhão” (DAp 172), tendo por modelo as primeiras comunidades cristãs retratadas nos Atos dos Apóstolos (At 2 e 4). Assim, a paróquia será mais viva, junto com suas comunidades, coordenadas por leigos ou leigas, por diáconos permanentes, animadas por religiosos e religiosas, e que tenham no Conselho Pastoral Paroquial, presidido pelo pároco, seu principal articulador pastoral.

ConclusãoEm comunhão com outras células vivas da Igreja, comunidades de discípulos e discípulas geradas pelo encontro com Jesus Cristo, Palavra feito carne (cf. Jo 1,14), como são os movimentos, as novas comunidades, as pequenas comunidades, que integram a rede de comunidades que a paróquia é chamada a ser, reafirmamos aqui o que está escrito no Documento 25 da CNBB: “Ao concluir estas reflexões, desejamos agradecer a Deus pelo dom que as CEBs são para a vida da Igreja no Brasil, pela união existente entre os nossos irmãos e seus pastores, e pela esperança de que este novo modo de ser Igreja vá se tornando sempre mais fermento de renovação em nossa sociedade”.

sábado, 1 de maio de 2010

Gestão e Missão na Vida Religiosa

“Gestão”, tema que desperta interesse crescente em diversos âmbitos da sociedade, começa a encontrar eco também na Vida Religiosa.Define-se Gestão como a habilidade e a arte de liderar pessoas e coordenar processos, a fim de realizar a missão de um grupo estruturado ou organização. A palavra gestão está adquirindo um horizonte de significação mais amplo, a ponto de se tornar termo chave aplicável a distintas realidades. Fala-se então de “gestão do lar”, para lidar com as tarefas domésticas, de “gestão da sala de aula” para o trabalho do(a) professor(a), de “gestão de pessoas” em lugar de “recursos humanos”, de “gestão de marcas”, de “gestão do conhecimento” etc. A palavra se aplica bem, na maioria dos casos. Um professor(a), por exemplo, é um gestor(a) na sala de aula, pois lidera seus alunos e coordena o processo de ensino-aprendizagem.
No ambiente de religiosos(as) há um equívoco de considerar gestão como algo específico de empresas comerciais. Assim, ela visa somente lucro e sucesso, e em contrapartida, desconsidera as pessoas. Ora, qualquer organização, seja ela lucrativa ou não, só realizará sua missão se exercitar os princípios da gestão. A ciência e a prática da gestão se desenvolveram muito nas organizações comerciais (ou lucrativas), mas não são algo específico delas. Trata-se de uma conquista da humanidade. É claro que o modo capitalista de gestão, proveniente dos países do primeiro mundo, trouxe consigo a sua ideologia, que não deve ser aceita ingenuamente. Numa instituição cristã, qualquer modelo de gestão passará pelo crivo de seus valores, sofrerá mudanças e reinterpretações. Essa é condição fundamental para manter o fermento do evangelho nas suas estruturas.

1. Princípios da gestão
O que diferencia uma organização pastoral ou instituição do terceiro setor, da empresa lucrativa? Elas têm em comum uma série de tarefas similares na gestão. Mas, “somente a empresa comercial tem o desempenho econômico como missão específica” (Peter Drucker).
Os princípios de gestão profissional servem para qualquer organização, seja ela de finalidade religiosa, social, ambiental, ou de todas reunidas. A partir de Peter Drucker, apresentamos os princípios essenciais da gestão de organizações em sete pontos:

1. A gestão trata dos seres humanos. Sua tarefa é capacitar as pessoas a atuar em conjunto, efetivar suas forças e reduzir suas fraquezas. A gestão é um fator crítico e determinante na sociedade moderna, pois a grande parte das pessoas trabalha em instituições e dependem dela para sobreviver e contribuir com a sociedade.
2. A gestão está inserida na cultura, pois ela trata da integração das pessoas em um empreendimento comum. Os gestores fazem a mesma coisa, em qualquer parte do mundo, mas o como pode ser bem diferente. Seu sucesso está condicionado a descobrir e identificar os elementos das tradições, da história e da cultura do lugar onde atuam e utilizá-los como elementos constitutivos da própria gestão.
3. Toda organização requer compromisso com metas comuns e valores compartilhados, de forma a ter objetivos simples, claros e unificantes; e metas conhecidas pela população, que são constantemente reafirmadas. A primeira tarefa da gestão é pensar, estabelecer e exemplificar esses objetivos, valores e metas.
4. A gestão capacita a organização e cada um de seus componentes a crescer e a se desenvolver à medida que mudem as necessidades e oportunidades. Toda organização é uma instituição de aprendizado e de ensino. Daí a importância de treinamento e desenvolvimento em todos os níveis.
5. A instituição está ancorada na comunicação e na responsabilidade individual. Para executar bem seu trabalho, todos os seus componentes consideram e comunicam com clareza aquilo que oferecem aos outros e aquilo que recebem deles. E cada assume aquilo que lhe diz respeito, colaborando com todos.
6. Como um ser humano, a organização necessita de diversos indicadores para avaliar sua saúde e desempenho. Para as empresas, por exemplo, valem os indicadores de posição no mercado, inovação, produtividade, desenvolvimento do pessoal, qualidade e resultados financeiros. As instituições não lucrativas e religiosas também criam instrumentos para medir as questões específicas de sua missão. Assim, o desempenho está entranhado em qualquer organização e na sua gestão. Deve ser medido, julgado e continuamente melhorado.
7. O resultado de uma instituição é exterior a ela, está no seu público-alvo ou destinatários. Assim, o resultado de uma empresa é um cliente satisfeito, de um hospital é o paciente curado, de uma escola é o aluno que aprendeu algo que usará no correr da vida, e da pastoral social é o cristão atuando na transformação da sociedade.

As palavras-chave dos princípios essenciais da gestão seriam então: capacitação de pessoas para atuarem em conjunto, inserção na cultura, compromisso com metas e valores compartilhados, aprendizado constante, comunicação e responsabilidade, critérios de desempenho, resultado focado em seu destinatário.
Portanto, gestão profissional é muito mais do que administrar, tomar conta do dinheiro, ou zelar do patrimônio. Consiste no meio eficaz de conduzir as organizações, para que elas realizem sua missão. A gestão leva em conta as pessoas, a finalidade da instituição e seus valores, os processos internos, o que a organização oferece aos seus interlocutores ou clientes, a relação com a sociedade, bem como a necessidade de sobrevivência e continuidade (viabilidade econômico-financeira). Então, qual o lugar que a gestão profissional tem na Vida Religiosa e nas instituições por ela mantidas?

2. Gestão nas instituições de religiosos(as)
A gestão não é algo determinante na identidade dos consagrados(as), nem no discernimento em vista da missão. Não consiste em instância de salvação para a Vida Religiosa. Ao contrário, pode levá-la à asfixia espiritual. A prioridade reside no carisma e na espiritualidade. Inverter essa ordem seria desastroso para a liberdade espiritual dos seguidores de Jesus. A Vida Religiosa é bem mais do que as instituições e organizações que ela eventualmente mantém, como escolas, hospitais, mídias, gráficas, paróquias e iniciativas sociais. Há que se evitar equívocos, como por exemplo, substituir a opção pelos pobres (profetismo e carisma) por gestão da filantropia. A primeira é muito mais do que a segunda.
A gestão ganha importância no momento em que se faz a ponte entre o desejo e a realização, a proposta da missão e sua efetivação. Quanto mais desafiadora e complexa uma situação, mais será necessário liderar, organizar, empreender, planejar, executar, avaliar e aprender. Para isso, é necessário desenvolver habilidades (saber fazer) e conhecimentos apropriados. Seu lugar é irrenunciável como instrumento para alcançar resultados efetivos. Pois, como lembrava São Tiago, a fé sem ação é morta.
É comum ouvir de conselheiros provinciais, que também são membros da diretoria de mantenedoras, a expressão: “Eu não entendo nada disso”, quando tratam de assuntos de gestão organizacional. Diante de sérias decisões a tomar, limitam-se a acompanham o parecer do ecônomo(a), ou de sua assessoria leiga, sem questionar ou enriquecer a reflexão. E ainda arrematam: “Não é a minha área. Confio plenamente em vocês”. Essa é uma forma de se eximir da responsabilidade que lhes foi delegada. Mesmo que a pessoa não tenha formação básica em gestão, deve-se munir de instrumentos mínimos que lhe dêem condição de desempenhar sua tarefa com propriedade, pelo tempo que lhe foi confiada.
O(a) provincial e seu conselho têm como primeira tarefa animar e governar a vida religiosa. Mas, se a congregação fez a opção de conduzir obras (instituições formais de prestação de serviços), as pessoas que compõem a equipe de animação e governo também devem aprender a ser gestoras. Evidentemente, aquelas que desempenham cargos diretivos na mantenedora (instância civil) necessitam maior preparação do que seus parceiros(as) no conselho provincial que estão empenhados em outras áreas, como a formação inicial dos consagrados, a evangelização nas comunidades eclesiais, a inserção nos meios populares, ou a animação de uma pequena iniciativa. Todos precisam desenvolver as habilidades mínimas de pensar a província ou a congregação em termos complexos de desempenho, submetendo-os ao crivo crítico e construtivo do carisma. Só quem conhece bem uma questão, sob muitos ângulos, toma decisões acertadas, iluminadas pela fé. Sem este suporte, a boa intenção pode conduzir a opções equivocadas.

As congregações precisam formar seus quadros dirigentes também na perspectiva da gestão. Mas há perguntas vitais que acompanham esta opção: que modelo de gestão irão adotar? A gestão está a serviço de qual projeto de Igreja e de sociedade? Ela visa simplesmente manter e desenvolver o que já existe ou dará as condições para realizar novos sonhos?
Na equipe de animação e governo de determinada congregação há perfis e formações profissionais distintas, mas compete a todos(as) a dupla missão de animação religiosa e de coordenação organizacional. Ao provincial e seu conselho cabe ser simultaneamente pastores(as) e gestores(as). A imagem também se aplica às pessoas que animam processos de evangelização. Ser pastor(a) é cuidar das pessoas, fazer um itinerário de fé junto com elas e abrir-lhes novas perspectivas para viver. Ser gestor(a) significa coordenar processos de forma organizada, ter resultados mensuráveis a alcançar e zelar pela viabilidade da iniciativa.

3. Gestão e carisma
Vamos resumir algumas convicções sobre este polêmico tema, que envolve a relação do carisma com as chamadas “obras” tradicionais.
a) Os religiosos(as) e suas instituições encontram a razão de ser na missão, no carisma e na espiritualidade. Foram fundadas para responder a apelos suscitados pelo Espírito, captados e interpretados pelos fundadores. Seus membros e colaboradores se propõem a viver o seguimento de Jesus de uma maneira própria, servir à Igreja na evangelização e na promoção da vida, em toda a sua extensão. A fidelidade à sua identidade exige tanto um olhar para trás, baseando-se nos seus fundamentos e sua identidade originante, como para frente, atualizando a missão e reinterpretando o carisma e espiritualidade. Olhar de memória, companhia e profecia, com os pés no chão, continuando o movimento inaugurado por seu mestre e Senhor, com a dinâmica da encarnação. Encarnar-se é aceitar as belezas e as contingências da história humana, experimentar no presente a promessa, viver da esperança, semear a eternidade na realidade humana.
b) Os consagrados, em distintas famílias religiosas, configuraram historicamente sua missão através de instituições formais, denominada como obras. Algumas, desde o começo, destinaram-se aos pobres, tais como creches, asilos, casas-lares. Outros, embora tenham nascido com destinação preferencial para os mais necessitados, lentamente se voltaram para as elites. Como comportavam uma prestação de serviços com remuneração, foram forçadas, na sociedade moderna, a se organizarem de forma empresarial, especialmente para enfrentar a crescente concorrência. As obras são uma forma histórica de concretização do carisma, e não o carisma mesmo.
c) Nos últimos 30 anos, as comunidades religiosas inseridas e outras novas formas de presença e atuação dos consagrados(as) mostraram que a missão se realiza de múltiplas formas, de acordo com os sinais dos tempos. Muitas congregações redescobriram seu carisma e sua espiritualidade quando abandonaram as obras tradicionais, simplificaram o estilo de vida, reduziram as estruturas e favoreceram novas presenças junto aos pobres e necessitados. Compete a cada instituto discernir se vale a pena continuar com suas obras e que orientação dará a elas. Essa é uma questão que antecede a gestão profissional, pois diz respeito ao discernimento em vista da fidelidade à missão. Aqui se joga um dos elementos decisivos para o presente e o futuro da vida religiosa.
c) Se uma congregação opta por manter e ampliar suas iniciativas de prestação de serviços, como escolas e universidades privadas, hospitais, gráficas, editoras, deve se organizar de forma profissional. Desenvolver a competência da gestão se torna então uma necessidade ineludível. Mas ela vai acompanhada da espiritualidade e dos valores da congregação, para manter sua alma, identidade e finalidade última. Se o modelo de organização empresarial contamina o interior da Vida Religiosa, suas motivações, o estilo de viver e conviver, corrói na base a identidade dos consagrados.
d) Dependendo da complexidade e do tamanho das iniciativas, trata-se de adotar os princípios de gestão empresarial, colocando limites. E sobretudo, criticá-los construtivamente à luz do seguimento de Jesus e da opção preferencial pelos pobres. Isso significará necessariamente a constituição de organizações renovadas, que simultaneamente cultivam a competência profissional, a cultura da solidariedade, a consciência ambiental e planetária.
e) A grande parte das congregações religiosas nasceu para responder a uma necessidade gritante de seu tempo. Os fundadores tinham um olhar privilegiado para os pobres e os necessitados. O mundo contemporâneo pede iniciativas organizadas pela sociedade civil, visando à superação da pobreza, da marginalidade, da exclusão social, e da destruição dos ecossistemas. Aumenta a consciência de que a globalização dos mercados sem a globalização da solidariedade levará o mundo ao caos. Há uma tendência generalizada de crescimento do terceiro setor, ou seja, das iniciativas privadas com finalidade social, atuando em parceria com os órgãos governamentais, empresas e ONGs. Os religiosos(as) têm em sua origem a opção preferencial pelos pobres. Na sua história recente, devido à teologia da libertação e as comunidades inseridas nos meios populares empenharam-se nas lutas das mulheres, dos negros, dos índios, dos direitos das crianças e dos adolescentes. De forma compartilhada, iniciaram uma metodologia original de atuar junto aos setores populares, favorecendo seu protagonismo. Desenvolveram então um conhecimento aplicado original sobre o mundo dos pobres. Este fato de estar afetiva e efetivamente “nas fronteiras da sociedade” dá aos grupos cristãos condições ímpares de serem novamente pioneiros no terceiro setor. Para alcançar tal escopo, não basta somente boa vontade.

É necessário aplicar e reinterpretar os princípios de gestão e especialmente, focar em resultados.Um grande desafio da Vida Religiosa no presente e no futuro será desenvolver a habilidade de gestão, nos mais diversos âmbitos, em sintonia com os valores e o espírito profético e místico que a anima.

sábado, 24 de abril de 2010

Etapas da morte

Estive hoje na Paróquia N.S. Rainha, no bairro Belvedere, em Belo Horizonte, num seminário sobre Escatologia Cristã. Trabalhei com o tema da Morte e do Juízo de Deus. O grupo, de mais de 150 leigos, me impressionou pelo interesse em aprofundar sua fé.
Gostaria de receber os depoimentos das pessoas que participaram comigo deste momento de formação teológico-pastoral.
Partilho com você um texto do teólogo R. Blank sobre o processo de morrer.

A morte não é algo desconhecido, porque todo ser humano passa por tal experiência. Mas, é relativamente tarde que a ciência começou a se interessar pelo fenômeno. Há pouco mais de vinte anos que o mundo inteiro ficava surpreso com os resultados de uma pesquisa sobre pacientes terminais ou clinicamente mortos que, depois de sua revitalização, revelaram experiências até agora desconhecidas.
Quem, hoje, pesquisar na Internet essas experiências, chamadas de "near-death-experiences", encontra milhões de sites, que se preocupam com o assunto. As assim chamadas "experiências perto da morte", tornaram-se objeto de pesquisas de todo tipo e de interpretações de toda espécie. Ficou de conhecimento geral que, perto da morte, as pessoas podem passar por experiências intrigantes; sentir-se fora de seu corpo, passar por um túnel escuro, enxergar uma luz clara e brilhante, e fazer a experiência de paz e de harmonia no momento de encontrar-se com essa luz.
As interpretações desses fenômenos, cuja existência não mais podemos negar, são das mais variadas. Uns querem ver nelas as primeiras experiências do além. Outros interpretam tudo a partir de mecanismos psicofisiológicos, como últimas descargas bio-elétricas do cérebro. A resposta definitiva até hoje não temos, mas há cada vez mais indícios que apontam na direção de uma explicação psicofisiológica.
A descoberta de tais fenômenos levou a ciência a preocupar-se mais com aquela experiência que, até hoje, ainda permanece um dos campos pouco explorados pela ciência: a morte. O interesse científico pelo fenômeno cresceu de tal maneira que ressurgiu com novo vigor aquele ramo da ciência que se preocupa com a morte, a assim chamada tanatalogia, cujo campo de interesse vai da medicina e da biologia, até as áreas da antropologia social, da psicologia, da antropologia e da sociologia, e finalmente termina com a filosofia e a teologia.
A preocupação científica com a morte mostrou quão pouco ainda sabemos sobre essa última experiência empírica de todos nós. O que acontece conosco na morte?
A famosa pesquisadora Elisabeth Kübler Ross descobriu que, no processo de nosso morrer, se podem distinguir cinco fases bem nítidas. A primeira delas está sendo chamada de "choque ou incredibilidade". Frente à informação de que a sua morte é inevitável, a pessoa, primeiro, não acredita naquilo que os médicos dizem. Quando, porém, não é mais possível negar o óbvio, entra numa segunda fase, aquela da raiva, da ira, e da inveja. "Por que eu? Existem mil razões para eu não morrer!" Pessoas que acreditam em Deus começam a culpá-lo. "Que Deus é este, que me deixa morrer, sabendo que a minha família ainda precisa de mim!"
Há de fato mil razões para não morrer, e na segunda fase, essas razões estão sendo lembradas. Mas, diante da impossibilidade de impedir o processo do morrer, a pessoa se torna agressiva. Agressiva contra si mesma, agressiva contra Deus, agressiva contra as pessoas em torno dela. O pessoal hospitalar que trabalha com moribundos conhece muito bem as explosões de raiva que nessa fase podem acontecer. As pesquisas da tanatologia ajudam-nos a compreender tal comportamento e a tolerá-lo, porque sabemos que, na base de toda essa agressividade, há o profundo desespero daquele que se vê confrontado com o inevitável que lhe inspira medo e do qual quer fugir.
É aqui que se abre todo um campo de ação para uma psicologia hospitalar ainda em formação. Abre-se todo um campo, também, para uma pastoral praticamente inexistente ainda: A pastoral do moribundo. Ela ficaria do lado da pessoa em todos os momentos de seu processo de morrer, ajudando-a a passar com mais facilidade pelas suas fases.
A terceira delas começa a partir do momento em que a pessoa se torna capaz de superar a sua raiva. Com isso, entra na fase da "negociação". Ela tenta negociar um prazo maior. "Vou morrer, sim, mas não já, mas o ano que vêm". Em geral, porém, toda negociação não adianta e, assim, a pessoa entra na quarta etapa de seu processo de morrer: a depressão. O moribundo, agora, deve despedir-se do mundo e, nessa ocasião, percebe que ama sua vida muito mais que pensou. Despedir-se dela torna-o triste. Mas, realizar a despedida é a condição para poder aceitar a morte. Uma vez realizada tal aceitação, a pessoa se tranqüiliza. Ela, agora, pode falar de seu morrer com serenidade e, muitas vezes, nessa fase, é o moribundo que consola a sua família e não mais a família que consola o moribundo.
São estas as cinco fases do morrer, descobertas e pesquisadas pela tanatologia. Mas, além de preocupar-se com esse lado psicossocial do morrer, a mesma tanatologia se interessa também por uma outra questão: quando é que podemos declarar uma pessoa realmente morta?
Nós nos acostumamos a falar de "morte cerebral" ou "morte clínica", mas, em geral, tais termos são compreendidos de maneira muito restrita, assim como se eles designassem a morte da pessoa inteira ou como se fosse um "momento" bem determinado.
Na realidade, porém, era a Comissão Ética da Universidade de Harvard que propunha o termo, em 1968, como definição da morte. Tal redefinição se fez necessária, frente à nova técnica de transplante de corações.
A noção não determina um "momento específico", mas deve ser compreendida muito mais em termos de uma "síndrome" que inclui toda uma escala de sintomas, cuja soma conduz à declaração da morte. Na verdade, essa declaração determina nada além do que a morte de um órgão humano, o cérebro. E as evidências apontam que nem do cérebro inteiro se trata, mas só de uma parte.Quando essa parte morreu, a medicina declara o paciente morto, e esta declaração, além de seu conteúdo médico, tem também um significado jurídico muito importante. A partir daquela declaração, a pessoa é juridicamente morta. Agora, os seus órgãos podem eventualmente ser usados para transplantes. Do ponto de vista biológico, porém, com a declaração da morte cerebral, esses órgãos ainda estão bem vivos. Eles morrerão, progressivamente, num processo que, só mais ou menos três semanas mais tarde, chegará ao seu fim. É este momento que a tanatologia chama de "morte real".