quarta-feira, 30 de junho de 2010

Obras apostólicas. Com os olhos fixos em que?

Nos últimos anos, a Vida Religiosa experimentou mudanças significativas no tocante às “obras”, ou seja, instituições complexas criadas para traduzir o carisma, tais como: escolas, hospitais, obras sociais (creches, orfanatos e asilos), meios de comunicação e casas de retiro. O que aconteceu? Como enfrentar estas transformações no âmbito das obras, na sociedade plural? O fato leva as pessoas a dirigirem o olhar em várias direções. Algumas se fixam no passado, em atitude de nostalgia. Outras permanecem perplexas, com o olhar perdido. Por fim, há quem se põe a caminho, olhando para frente, e ensaia soluções.

O olhar retrospectivo
No passado, as obras tinham finalidades claras e inquestionáveis, tais como: (1) anunciar Jesus Cristo e ensinar a doutrina cristã, (2) exercitar a caridade, prestando assistência aos pobres e necessitados, (3) ajudar a formar cidadãos imbuídos da fé cristã, (4) garantir a sobrevivência dos religiosos(as) e de seus Institutos.
A gestão das obras era feita de forma caseira e amadora. Nem era preciso ser diferente, pois muitas outras coisas na sociedade aconteciam de maneira semelhante. Os religiosos(as) exerciam o máximo de funções nas obras: operacionais, de execução direta e de coordenação. Leigos e leigas tinham o mínimo possível de participação. Somente em caso de suplência e em algumas funções operacionais se recorria aos “de fora”.
Como o Estado não podia arcar com determinados serviços à população, delegava tarefas às congregações religiosas, em troca de algumas concessões. As obras tinham grande reconhecimento social e eclesial. O padre e o prefeito se orgulhavam em ter uma escola e um hospital católicos na sua cidade. Assim, criou-se a imagem de que as instituições católicas dos consagrados eram consistentes, sólidas e confiáveis. E a imagem correspondia à realidade dos fatos.
Do ponto de vista interno, as obras eram percebidas como a tradução perfeita do desejo dos fundadores(as). As comunidades religiosas habitavam dentro da obra, por vezes separadas por uma porta ou um corredor. Eram milícias a serviço das obras. O horário e o ritmo de vida das comunidades religiosas eram moldados a partir das exigências de suas obras.

Novos desafios
Nas últimas décadas, este quadro se alterou substancialmente. A força da tradição e as glórias do passado são insuficientes para manter as obras. Em todas as áreas onde antes atuavam unicamente instituições religiosas, entraram outros atores sociais. No campo de instituições de ensino, hospitais e comunicação chegaram poderosos concorrentes, com notório diferencial competitivo. Eles trouxeram o conceito comercial de “criar valor”.
Nas organizações antigas, importa manter as práticas e rotinas que deram certo no passado. Por isso, a inovação é vista com certa desconfiança. A instituição age de forma reativa. Somente realiza mudanças quando de se vê forçada a isso, a partir de uma provocação externa. Ora, seus concorrentes, ao contrário, são proativos e empreendedores.
Além disso, na mentalidade que rege as obras tradicionais, dá-se muita importância ao patrimônio material: terrenos, prédios, salas, mobiliários e, em menor grau, novos equipamentos. Ora, numa visão contemporânea de gestão, estas coisas somente contam se efetivamente geram resultados, de acordo com a missão da organização e a demanda de seu público-alvo. Caso contrário, constituirão custos, devido à constante depreciação, exigência de manutenção e de atualização.
A finalidade evangelizadora das obras entrou em crise e exige uma mudança de perspectiva, na medida em que a sociedade contemporânea se tornou plural também no âmbito religioso. Muitos profissionais da educação, da saúde e da área social que trabalham em instituições religiosas apresentam experiências religiosas e convicções que não se enquadram no perfil católico padrão. Qualquer espaço confessional, mantendo sua identidade, deve respeitar as crenças de seus colaboradores e interlocutores. E ainda há o desafio de evangelizar, como “boa nova significativa”, considerando a diversidade religiosa dos destinatários.

As obras mantidas por religiosos(as), inclusive as filantrópicas, vivem uma situação desafiadora. Com a expansão da sociedade urbana, aumentam as exigências de profissionalismo, simultaneamente em várias áreas: a específica de sua missão, a contábil, a administrativa, a financeira, a patrimonial, a de suprimentos, a de legislação e a de marketing. A busca de qualidade se torna um imperativo. Mas, por inércia, elas mantém características de gestão caseira e amadora. As decisões são tomadas sem um estudo sério sobre os elementos envolvidos. Além disso, deve-se lidar com uma questão delicada: toda instituição privada de prestação de serviços (como escola, hospital ou editora) é também um negócio. Seu público-alvo não somente é um potencial destinatário da evangelização, mas também sua clientela. E, como cliente, paga para receber determinado serviço, em crescente nível de exigência. A partir desta relação profissional e “comercial”, se estabelece uma teia de relações e de papéis correspondentes. Toda instituição do mercado precisa de equipe qualificada, constituída por gestores, técnicos, executores e grupo operacional. Deve manter com sua clientela uma relação estreita, visando satisfação e fidelização. Recorre a fornecedores adequados, que lhes vendem os insumos necessários. Enfrenta muitos concorrentes. Assume um posicionamento no mercado (perfil do produto e segmento). E, por fim, precisa cuidar da imagem e das relações com o público externo. Quanto trabalho e esforço!
As exigências de qualidade e profissionalismo também chegaram à área social. Quem atua hoje em projetos sócio-educativos não carrega o peso da gestão de um negócio, mas precisa desenvolver várias competências. Deve conhecer, com muitos olhares, seus interlocutores e compreender os múltiplos fatores que influenciam a vida dos pobres. Devido à necessidade de recursos e ao estabelecimento de parcerias, requer-se habilidade teórico-prática para elaborar, avaliar e aperfeiçoar projetos. Deve-se conhecer as políticas públicas e atuar decididamente nos organismos da sociedade civil, para garantir conquistas cidadãs. Uma equipe que atua em instituições sociais também precisa aprender a lidar com questões básicas de comunicação e marketing, contabilidade, legislação trabalhista e de voluntariado, planilha de custos, etc. Atua decididamente em redes com instituições similares, visando fortalecer a sociedade civil. E, além de tudo, desenvolve a criatividade, de forma a estimular o crescente protagonismo dos pobres. Quem diz que “é mais fácil trabalhar com os pobres”, está enganado. Há muitas demandas!

Instituições inovadoras e contemporaneidade
Pesquisadores da ciência da gestão, como Bateman e Snell, apontam algumas características básicas das organizações que crescem na sociedade atual, sejam filantrópicas ou empresariais. Elas teriam no mínimo os seguintes traços predominantes: conectividade, inovação, qualidade e velocidade.
Conectividade: instituições atualizadas captam e interpretam as tendências significativas da cultura contemporânea e as relacionam com seu público-alvo. Percebem as oportunidades inauditas e se sentem desafiadas por eles. E como as soluções são difíceis, a conectividade leva a estabelecer amplas redes de parcerias e alianças estratégicas. Hoje é impossível avançar sozinho(a).
Inovação: consiste em introduzir novos serviços ou produtos, antecipando-se para responder às demandas explícitas ou implícitas da sociedade. A inovação é o meio mais poderoso para crescer. Exige-se uma organização criativa, que invista em pesquisa e desenvolvimento e cultive a gestão do conhecimento. Um grupo inovador ousa arriscar, aprende rapidamente de quem faz bem; aperfeiçoa e recria o que aprendeu. E, sobretudo, cria as condições para colocar em prática os projetos inovadores.
Qualidade: diz respeito à excelência do serviço prestado, qualquer que seja seu público-alvo ou interlocutor. Um grupo organizado, que tem razão de ser e de atuar (missão), busca aperfeiçoamento contínuo naquilo que lhe é próprio. Isso vale tanto para uma associação popular, quanto para um grupo religioso ou uma empresa. Certamente, a qualidade está condicionada à infraestrutura disponível, aos recursos e à qualificação das pessoas que atuam na instituição. E a grande novidade reside nos grupos que conseguem dar saltos de qualidade, recorrendo à imaginação e à criatividade, com poucos recursos. Maximizam a relação custo x benefício.
Velocidade: Como o tempo atual está acelerado, exige-se das instituições que sejam rápidas para responder às demandas e necessidades de seu público-alvo e da sociedade. Aquela que demora a chegar, é preterida. Quem começa logo, tem o ônus do risco e o bônus de um diferencial competitivo.

Basta pensar nestas características e olhar para as obras das Congregações religiosas, para constatar que, na média geral, elas estão bem aquém do necessário. O grau de inovação é pequeno e se investe pouco em Pesquisa e Desenvolvimento. O saber operativo, que devia circular livremente e gerar novos conhecimentos, permanece represado devido à luta pelo poder e a uma mentalidade restritiva de “províncias” e “circunscrições”, dentro da mesma família religiosa. A lentidão e a baixa conectividade marcam sua cultura institucional.
Felizmente, há também fatores positivos. Várias províncias e Institutos buscam qualidade no serviço das obras, com perspectiva humanizadora, ao mesmo tempo que têm uma postura crítica em relação ao mercado. Crescem as redes, parcerias e alianças estratégicas entre congregações religiosas e outras organizações da sociedade civil. Com isso, estimula-se o aumento de conectividade. Aumenta-se o profissionalismo na gestão das organizações, sem perder o carisma. E sempre há riscos em manter o equilíbrio entre dimensões díspares e conflituosas.

Obras e carisma
Para alguns, a crise das obras se resolve à medida que a instituição religiosa se moderniza, assume feições profissionais, ganha visibilidade, fortalece sua identidade e imagem, fecha obras deficitárias, assume novas obras em contextos economicamente mais viáveis, melhora os procedimentos internos, aperfeiçoa os mecanismos de controle, assume uma visão estratégica voltada para o futuro, estabelece metas com indicadores e se lança em processo de aperfeiçoamento contínuo. Ora, tudo isso (e outras coisas mais) faz parte do processo de gestão das obras, mas é insuficiente, se não se leva em conta o componente do carisma e da espiritualidade.
As instituições de prestação de serviços dos religiosos, como escolas, hospitais e editoras, não nasceram para ser uma empresa a mais no mercado. Elas surgiram com a finalidade de evangelizar e promover o ser humano, em resposta a um apelo do Espírito, captado e interpretado pelos fundadores(as) como tal. Ao mesmo tempo, elas representavam um exercício de laicidade da vida consagrada, de estar no mundo de uma forma própria, trabalhando e garantindo seu sustento material. Os consagrados(as) não são anjos. Precisam de meios para sobreviver e ampliar sua missão.
Constata-se ainda que determinadas obras estão muito distantes das intuições básicas do fundador(a). Então, não basta que elas tenham sucesso e sejam bem geridas. Para a vitalidade do Instituto, necessitam estar alinhadas ao carisma fundacional, lido à luz dos Sinais dos Tempos. Não se trata de copiar o que fundador fez, pois as condições históricas mudaram. Mas é preciso se perguntar, o que ele(a) faria hoje, se estivesse começando sua empreitada? Quais seriam seus destinatários, e em que sentido inovaria na missão? O que escolheria visando o sustento material, o que promoveria de forma gratuita, não visando lucro...
Muitos Institutos nasceram para atender aos mais pobres e necessitados. Tal questão salta aos olhos, quando se folheia a vida dos fundadores ou se lê as Constituições. É verdade que o pluralismo contemporâneo favorece a adoção de um leque amplo de obras, destinados a diferentes públicos: ricos e pobres, gente da cidade e do campo, escola e obras sociais, hospitais e experiências de saúde popular, educação privada e obras conveniadas com o poder público. Mas cada Instituto deve privilegiar algumas presenças que sinalizam de forma clara a prioridade do carisma fundacional, mesmo que mantenha algumas obras tradicionais. Para isso, é preciso superar o apego às obras. Elas são expressões históricas do carisma. E como tal, precisam ser revisitadas e revistas.
Deve-se afirmar sem medo que a vitalidade do carisma vai além das obras. Em muitos casos, será necessário constituir comunidades religiosas sem obras, atuando junto aos pobres em cidades pequenas, aldeamentos indígenas, periferias das metrópoles, comunidades terapêuticas, população de rua, etc. Hoje há certo consenso a respeito da pluralidade das presenças apostólicas, contemplando não somente as obras institucionais, mas também outras iniciativas, como as comunidades inseridas e outros projetos “nas fronteiras”. Mas, na hora de tomar as decisões, o peso da história já construída é maior...

Para um “discernimento das obras”
A grande parte dos Institutos apresenta o mesmo quadro preocupante: aumento lento e irreversível da média de idade, número de novas vocações menor do que a soma de mortes e saídas. Esta conjugação de fatores tem um efeito multiplicador. Hoje há províncias religiosas no qual o número de obras é inadequado para a quantidade de pessoas que estão na vida ativa. E algumas obras são deficitárias do ponto de vista econômico e caminham para o fechamento. Outras exigem uma vultuosa quantia para atualização, no que diz respeito a prédios, equipamentos, tecnologia e formação de pessoas. E outras ainda, do ponto de vista social e pastoral, perderam parte do vigor original.
Ainda é tempo de mudança! Ela deve realizada enquanto as pessoas tem energia vital e disposição para arcar com os riscos. Se isso não acontecer, a atual vida consagrada caminhará para a morte. Uma morte lenta, muito lenta e inexorável. Tal situação já é perceptível da Europa...
A reestruturação das obras faz parte do processo de renovação da Vida Religiosa. Porém, renovar a Vida Consagrada trata-se de algo mais profundo do que fechar, redirecionar ou abrir obras. Toca na espiritualidade, na forma de orar, nas relações fraternas e sororais, na missão, na vivência da consagração. Todos esses elementos juntos configuram o grau de atratividade da Vida Religiosa. Ou seja: o que ela significa e transmite para a Igreja e a sociedade, o que ela pode atrair as novas gerações.
A reestruturação das obras inclui um longo processo, com vários elementos. Citaremos brevemente alguns deles.
*Análise da situação da província ou Instituto, contemplando o número efetivo de consagrados(as) na ativa, tipo de obras existentes, relação das obras com o carisma, número e tipo de comunidades religiosas, média de faixa etária, etc.. Esta análise complexa deve contar com assessoria externa, com a colaboração de profissionais leigos, de quem tem o olhar da Vida Consagrada, além de levar em contar a contribuição das comunidades religiosas.
*Processo de discernimento das obras: quais devem ser fechadas, quais serão revitalizadas, que novas iniciativas serão tomadas.
*Formação de leigos(as) para a gestão das obras.
*Preparação profissional de alguns consagrados(as) para gestão de obras.

Alguns institutos religiosos já promoveram processos de reestruturação de obras. Como é inevitável, houve acertos e erros. Essa experiência deve ser partilhada com outros, que estão iniciando agora. Importa colocar-se a caminho, em busca de fidelidade criativa ou da criatividade fiel. Com os olhos fixos em Jesus e no futuro. Peregrinos(as) e aprendizes!

Ir. Afonso Murad
Publicado originalmente no Caderno preparatório para a Assembléia Geral da CRB, julho de 2010.

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