quinta-feira, 13 de maio de 2010

Documento da CNBB sobre CEBs

A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), ao final de sua Assembléia Anual, aprovou o documento sobre as CEBs. Vale a pena ler e divulgar.

Introdução“As Comunidades Eclesiais de Base”, dizíamos em 1982, constituem “em nosso país, uma realidade que expressa um dos traços mais dinâmicos da vida da Igreja (...)” (Comunidades Eclesiais de Base na Igreja do Brasil, CNBB, doc. 25,1). Após a Conferência de Aparecida (2007) e o 12º Intereclesial (Porto Velho-2009), queremos oferecer a todos os nossos irmãos e irmãs uma mensagem de animação, embora breve, para a caminhada de nossas CEBs.
Queremos reafirmar que elas continuam sendo um “sinal da vitalidade da Igreja” (RM 51). Os discípulos e as discípulas de Cristo nelas se reúnem para uma atenta escuta da Palavra de Deus, para a busca de relações mais fraternas, para celebrar os mistérios cristãos em sua vida e para assumir o compromisso de transformação da sociedade. Além disso, como afirma Medellín, as comunidades de base são “o primeiro e fundamental núcleo eclesial (...), célula inicial da estrutura eclesial e foco de evangelização e, atualmente, fator primordial da promoção humana (...)” (Medellín 15).
Por isso, “Como pastores, atentos à vida da Igreja em nossa sociedade, queremos olhá-las com carinho, estar à sua escuta e tentar descobrir através de sua vida, tão intimamente ligada à história do povo no qual elas estão inseridas, o caminho que se abre diante delas para o futuro”. (CNBB 25,5)

Os desafios postos às CEBs hoje: a sociabilidade básica no clima cultural contemporâneo
Com as grandes mudanças que estão acontecendo no mundo inteiro e em nosso país, as CEBs enfrentam hoje novos desafios: numa sociedade globalizada e urbanizada, como viver em comunidade? Nascidas num contexto ainda em grande parte rural, serão capazes de se adaptar aos centros urbanos, que têm um ritmo de vida diferente e são caracterizados por uma realidade plural? Dentro desse contexto, há outro desafio: como transmitir às novas gerações as experiências e valores das gerações anteriores, inclusive a fé e o modo de vivê-la? Só uma Igreja com diferentes jeitos de viver a mesma Fé será capaz de dialogar relevantemente com a sociedade contemporânea.
O século XX foi, sem dúvida, o século da globalização. Suas consequências para a vida cotidiana são tantas que hoje se fala que o mundo vive não mais uma época de mudanças, mas “uma mudança de época, cujo nível mais profundo é o cultural” (DAp 44). De fato, “a ciência e a técnica quando colocadas exclusivamente a serviço do mercado (...) criam uma nova visão da realidade” (DAp 45), mas isso não significa um passo em direção ao desenvolvimento integral proposto pela encíclica Populorum progressio e reafirmado pelo Papa Bento XVI em Caritas in Veritate, porque a lógica do mercado corrói a estrutura de sociabilidade básica que se expressa nas relações de tipo comunitário. À medida que ele avança, expulsa as relações de cooperação e solidariedade e introduz relações de competição nas quais o mais forte é quem leva vantagem.
Desta forma, é preciso valorizar as experiências de sociabilidade básica: as relações fundadas na gratuidade que se expressa na dinâmica de oferecer-receber-retribuir. O cultivo da reciprocidade tem como espaço primeiro aquele onde a vizinhança territorial é importante para a vida cotidiana, como em áreas rurais, bairros de periferia e favelas. É a solidariedade entre vizinhos – melhor dizendo, entre vizinhas – que assegura o cuidado com crianças, idosos e doentes, por exemplo. Não por acaso, esses espaços periféricos favorecem o desenvolvimento de associações de vizinhança e movimentos que reivindicam melhorias de equipamento urbano, bem como das próprias Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). São as relações de reciprocidade que, promovendo a solidariedade que é a força dos pobres e pequenos, permite que se diga que "gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares pouco importantes, consegue mudanças extraordinárias".

O percurso histórico das CEBs no BrasilA experiência das CEBs não surgiu de um planejamento prévio, mas de um impulso renovador, como um sopro do Espírito, já presente na Igreja no Brasil. Esse impulso renovador se manifesta de forma crescente nos anos 50 e 60 do século 20. Na verdade, os tempos se tornaram maduros para uma nova consciência histórica e eclesial: primeiro, pela emergência de um novo sujeito social na sociedade brasileira, o sujeito popular, que ansiava à participação; segundo, pela emergência de um novo sujeito eclesial, portador de uma nova consciência na Igreja. Ele ansiava participar ativa e corresponsavelmente da vida e da missão da Igreja. Esse sujeito provoca novas descobertas e conversões pastorais (CNBB 25,7).
Nelas se revigoravam ou restauravam as relações de reciprocidade, de modo a favorecer a reconstrução das estruturas da vida cotidiana, do mundo da vida, em um contexto social adverso. A interação entre a CEB enquanto organismo eclesial e a comunidade local de vizinhos é uma das grandes contribuições da Igreja à conquista dos direitos de cidadania em nosso País. Ao acolher pastoralmente a população rural ou migrante em capelas e salões improvisados nos quais elas se sentissem “em casa”, a Igreja lhes ofereceu uma possibilidade de organizar-se autonomamente, quando as empresas e os poderes públicos só viam nela o potencial de mão-de-obra a ser empregada no processo de industrialização.

A experiência dos Intereclesiais
Os Encontros Intereclesiais das CEBs são patrimônio teológico e pastoral da Igreja no Brasil. Desde a realização do primeiro, em 1975 (Vitória – ES), reúnem diversas dioceses para troca de experiência e reflexão teológica e pastoral acerca da caminhada das CEBs. Foram doze encontros nacionais, diversos encontros de preparação em várias instâncias (paróquias, dioceses, regionais) e, desde a realização do 8º Intereclesial ocorrido em Santa Maria – RS (1992), são realizados seminários de preparação e aprofundamento dos temas ligados ao encontro.
Manifestação visível da eclesialidade das CEBs, os Encontros Intereclesiais congregam bispos, religiosos e religiosas, presbíteros, assessores e assessoras, animadores e animadoras de comunidades, bem como convidados de outras igrejas cristãs e tradições religiosas. Neles se expressa a comunhão entre os fiéis e seus pastores.

Espiritualidade e vivência eucarística
“O Concílio Vaticano II, eminentemente pastoral, provocou um grande impacto na Igreja. Suas grandes idéias-chaves trouxeram a fundamentação teológica para a intuição, já sentida na prática, de que a renovação pastoral deve se fazer a partir da renovação da vida comunitária e de que a comunidade deve se tornar instrumento de evangelização”. (CNBB 25,11)
A exigência do Vaticano II é de razão estritamente teológica, de ordem trinitária. A essência íntima de Deus não é a solidão, mas a comunhão de três divinas Pessoas. A comunhão – koinonia, communio – constitui a realidade e a categoria fundamental que permeia todos os seres e que melhor traduz a presença do Deus-Trindade no mundo. É a comunhão que faz a Igreja ser “comunidade de fiéis”. Por isso, o Vaticano II faz derivar a união do Povo de Deus da unidade que vigora entre as três divinas Pessoas (LG 4).
A Trindade nos coloca, desde o início, no coração do mistério de comunhão. O Papa João Paulo II, falando aos bispos em Puebla, em 28 de janeiro de 1979, proclamou: “Nosso Deus em seu mistério mais íntimo não é uma solidão, mas uma família... e a essência da família é o amor”. A comunhão e a comunidade devem estar presentes em todas as manifestações humanas e em todas as concretizações eclesiais.
Por isso mesmo, a Eucaristia está no centro da vida de nossas comunidades de base. É o sacramento que expressa comunhão e participação de todos e todas, como numa grande família, ao redor da Mesa do Pai. Há comunidades que recebem a comunhão eucarística graças a presença do Santíssimo no local ou pelo serviço de um ministro extraordinário da sagrada comunhão. Como nossas CEBs, em sua maioria, “não têm oportunidade de participar da Eucaristia dominical”, por falta de ministros ordenados, “elas podem alimentar seu já admirável espírito missionário participando da ‘celebração dominical da Palavra’, que faz presente o mistério pascal no amor que congrega (cf. 1 Jo 3, 14), na Palavra acolhida (cf. Jo 5, 24-25) e na oração comunitária (cf. Mt 18,20)” (DAp 253).
A realidade das CEBs se expressa na liturgia e também na diaconia e na profecia. A diaconia educa, cura as feridas, multiplica e distribui o pão e chama para a solidariedade e a comunhão. A profecia anuncia o desígnio de Deus e denuncia os abusos, a mentira, a injustiça, a exploração e exige a conversão. Por isso, sofre perseguição, difamação, morte.
Temos duas testemunhas recentes desse duplo ministério dos discípulos e discípulas de Jesus Cristo: Dra. Zilda Arns e Irmã Dorothy Stang. Há muito conhecidas por nossas comunidades pobres pelo Brasil afora, elas inspiraram a ação das CEBs. Elas entregaram a vida e nos deixaram seu testemunho de fé e amor aos pobres, fracos, desamparados e discriminados.
Esta espiritualidade também possibilitou a produção de uma rica manifestação artística em nossas comunidades – músicas, poesias, pinturas, símbolos – típicos da prática religiosa e cultural de nosso povo, e que também são instrumentos de evangelização e de missão.

Vivência e Anúncio da Palavra de Deus e o Testemunho de fé“A Palavra se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). A acolhida da Palavra de Deus e a vivência comunitária da fé são indissociáveis nas CEBs. A Bíblia faz parte do dia-a-dia da comunidade, estando presente nos grupos e pastorais, nas liturgias e na formação, na reza e nas ações que visam superar as desigualdades e injustiças da sociedade brasileira.
São espaços privilegiados de leitura bíblica nas CEBs os círculos bíblicos e grupos de reflexão. Neles o povo se coloca como sujeito eclesial, assume seu lugar na comunidade e na sociedade. O protagonismo dos leigos nas CEBs é expressão viva de uma Igreja que se renova animada pelo Espírito Santo, é também um sinal de que no discipulado estão surgindo novos ministérios e serviços.
“O ministério da Palavra exige o ministério da catequese a todos porque ‘fortalece a conversão inicial e permite que os discípulos missionários possam perseverar na vida cristã e na missão em meio ao mundo que os desafia’” (DGAE 64; DAp 278c). A vida em comunidade já é uma forma de catequese. Ela predispõe para o aprofundamento da fé e da vida cristã por meio do ministério da catequese e também pelo testemunho fraterno de seus membros.

Solidariedade e serviço
Alimentadas pela Palavra de Deus e pela vivência de comunhão, as CEBs promovem solidariedade e serviço. Reunindo pessoas humildes, as CEBs ajudam a Igreja a estar mais comprometida com a vida e o sofrimento dos pobres, como fez Jesus. Elas manifestam, mais claramente, que “o serviço dos pobres é medida privilegiada, embora não exclusiva, do seguimento de Cristo” (DP 1145).
Mais ainda, o surgimento das CEBs, junto com o compromisso com os mais necessitados, ajudou a Igreja a “descobrir o potencial evangelizador dos pobres”, primeiro, porque interpelam a Igreja, chamando-a à conversão; segundo, porque “realizam em sua vida os valores evangélicos da solidariedade, serviço, simplicidade e disponibilidade para acolher o dom de Deus” (DP 1147). As vocações religiosas e sacerdotais despertadas pelas CEBs sinalizam vitalidade espiritual, comunhão eclesial e um novo estímulo de consagração a Deus.

A formação dos discípulos missionários
Na sua experiência já amadurecida, as CEBs querem ser Igreja como o Concílio Vaticano II desejou: uma Igreja toda ministerial a serviço do Reino de Deus. A formação do discípulo missionário começa dentro delas pela experiência de um encontro feliz e alegre com a pessoa de Jesus, sua vida e seu destino. Como Jesus convocou discípulos e discípulas para estarem com ele, do mesmo modo, ele convoca também hoje discípulos e discípulas para estarem com ele e dele aprenderem o amor ao Pai, a fidelidade ao Espírito e o compromisso para a transformação do mundo em mundo de irmãos e irmãs.
Por sua capacidade de cuidar da formação da própria comunidade e de olhar, com compaixão, a realidade, as CEBs podem e devem ser cada vez mais escolas que ajudam “a formar cristãos comprometidos com sua fé; discípulos e missionários do Senhor, como o testemunha a entrega generosa, até derramar o sangue, de muitos de seus membros” (DAp 178).

A participação nos movimentos sociais, de cidadania, de defesa do meio ambiente em vista da construção do Reino de DeusNo que diz respeito à relação das CEBs com a dimensão sociopolítica da evangelização, o Sínodo sobre A Justiça no Mundo, de 1971, já tinha afirmado que “a ação pela justiça e a participação na transformação do mundo nos aparecem claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, isto é, da missão da Igreja pela redenção do gênero humano e a libertação de toda situação de opressão” (introd.). Em vista disso, a Igreja no Brasil exorta as CEBs e demais comunidades eclesiais a se manterem fiéis à própria fé, no conteúdo e nos métodos, na busca da libertação plena, superando a tentação “de reduzir a missão da Igreja às dimensões de um projeto puramente temporal” (CNBB 25,64ss; Cf. EN 32).
Em relação à aproximação das CEBs com os movimentos populares na luta pela justiça, o documento 25 da CNBB afirmava que elas “não podem arrogar-se o monopólio do Reino de Deus”. Na verdade, a CEB deve tomar consciência de que, “como Igreja, é sinal e instrumento do Reino, é aquela pequena porção do povo de Deus onde a Palavra de Deus é acolhida e celebrada nos sacramentos ... sobretudo na Eucaristia” (70ss). As CEBs buscam, sim, a “colaboração fraterna com pessoas e grupos que lutam pelos mesmos valores” (73).
As CEBs têm despertado em muitos dos seus membros a espiritualidade do cuidado para com a vida dos seres humanos, de todas as formas de vida e a vida do Planeta Terra. A espiritualidade do cuidado tem motivado o surgimento de gestos e atitudes éticas de respeito, de veneração, de ternura, de cooperação solidária, de parceria, que promovam a inclusão de todos e de tudo no mistério da vida.
As CEBs promovem a participação ativa de seus membros nos grupos de economia popular solidária, resgatando o sentido originário da economia como a atividade destinada a garantir a base material da vida pessoal, familiar, social e espiritual. Contribui assim para que o trabalho humano, além de ser o lugar de edificação da dignidade humana e promoção da justiça social, seja também responsável pela promoção do desenvolvimento sustentável.
Espírito de abertura ecumênica e diálogo interreligioso
Uma das dimensões da espiritualidade cultivadas pelas CEBs é a do diálogo ecumênico e interreligioso, que se dá pela abertura ao mundo do outro, promovendo a unidade na diversidade e buscando as semelhanças na diferença. Esta espiritualidade dialogal tem sido assumida pelas CEBs como uma missão de fraternidade cristã, numa atitude de profundo respeito às demais manifestações religiosas, em busca da comunhão universal. Essa espiritualidade nasce do desejo expresso por Jesus: "Que todos sejam um!" (Jo 17,21)

Formação de rede de comunidades
Os membros das CEBs são discípulos de Cristo e ajudam a formar outras comunidades. Em meio a grandes extensões geográficas e populacionais, a comunidade eclesial de base requer que as relações sejam de fraternidade, partilha de vida, de bens e da própria experiência de fé. Ela deve provocar um encontro permanente com a Palavra de Deus e celebrar na liturgia, na alegria e na festa, a salvação que Jesus Cristo nos trouxe.
A experiência da fé e da participação faz amadurecer a comunidade eclesial de base, e lhe confere características próprias de modo a levá-la a um relacionamento fraterno de igualdade com as demais comunidades pertencentes à mesma paróquia. Com isso, a matriz-paroquial ganha maior relevância pastoral na medida em que passa a exercer a função de articuladora das comunidades.
Exortamos que a paróquia procure se transformar em “rede de comunidades e grupos, capazes de se articular conseguindo que seus membros se sintam realmente discípulos missionários de Jesus Cristo em comunhão” (DAp 172), tendo por modelo as primeiras comunidades cristãs retratadas nos Atos dos Apóstolos (At 2 e 4). Assim, a paróquia será mais viva, junto com suas comunidades, coordenadas por leigos ou leigas, por diáconos permanentes, animadas por religiosos e religiosas, e que tenham no Conselho Pastoral Paroquial, presidido pelo pároco, seu principal articulador pastoral.

ConclusãoEm comunhão com outras células vivas da Igreja, comunidades de discípulos e discípulas geradas pelo encontro com Jesus Cristo, Palavra feito carne (cf. Jo 1,14), como são os movimentos, as novas comunidades, as pequenas comunidades, que integram a rede de comunidades que a paróquia é chamada a ser, reafirmamos aqui o que está escrito no Documento 25 da CNBB: “Ao concluir estas reflexões, desejamos agradecer a Deus pelo dom que as CEBs são para a vida da Igreja no Brasil, pela união existente entre os nossos irmãos e seus pastores, e pela esperança de que este novo modo de ser Igreja vá se tornando sempre mais fermento de renovação em nossa sociedade”.

sábado, 1 de maio de 2010

Gestão e Missão na Vida Religiosa

“Gestão”, tema que desperta interesse crescente em diversos âmbitos da sociedade, começa a encontrar eco também na Vida Religiosa.Define-se Gestão como a habilidade e a arte de liderar pessoas e coordenar processos, a fim de realizar a missão de um grupo estruturado ou organização. A palavra gestão está adquirindo um horizonte de significação mais amplo, a ponto de se tornar termo chave aplicável a distintas realidades. Fala-se então de “gestão do lar”, para lidar com as tarefas domésticas, de “gestão da sala de aula” para o trabalho do(a) professor(a), de “gestão de pessoas” em lugar de “recursos humanos”, de “gestão de marcas”, de “gestão do conhecimento” etc. A palavra se aplica bem, na maioria dos casos. Um professor(a), por exemplo, é um gestor(a) na sala de aula, pois lidera seus alunos e coordena o processo de ensino-aprendizagem.
No ambiente de religiosos(as) há um equívoco de considerar gestão como algo específico de empresas comerciais. Assim, ela visa somente lucro e sucesso, e em contrapartida, desconsidera as pessoas. Ora, qualquer organização, seja ela lucrativa ou não, só realizará sua missão se exercitar os princípios da gestão. A ciência e a prática da gestão se desenvolveram muito nas organizações comerciais (ou lucrativas), mas não são algo específico delas. Trata-se de uma conquista da humanidade. É claro que o modo capitalista de gestão, proveniente dos países do primeiro mundo, trouxe consigo a sua ideologia, que não deve ser aceita ingenuamente. Numa instituição cristã, qualquer modelo de gestão passará pelo crivo de seus valores, sofrerá mudanças e reinterpretações. Essa é condição fundamental para manter o fermento do evangelho nas suas estruturas.

1. Princípios da gestão
O que diferencia uma organização pastoral ou instituição do terceiro setor, da empresa lucrativa? Elas têm em comum uma série de tarefas similares na gestão. Mas, “somente a empresa comercial tem o desempenho econômico como missão específica” (Peter Drucker).
Os princípios de gestão profissional servem para qualquer organização, seja ela de finalidade religiosa, social, ambiental, ou de todas reunidas. A partir de Peter Drucker, apresentamos os princípios essenciais da gestão de organizações em sete pontos:

1. A gestão trata dos seres humanos. Sua tarefa é capacitar as pessoas a atuar em conjunto, efetivar suas forças e reduzir suas fraquezas. A gestão é um fator crítico e determinante na sociedade moderna, pois a grande parte das pessoas trabalha em instituições e dependem dela para sobreviver e contribuir com a sociedade.
2. A gestão está inserida na cultura, pois ela trata da integração das pessoas em um empreendimento comum. Os gestores fazem a mesma coisa, em qualquer parte do mundo, mas o como pode ser bem diferente. Seu sucesso está condicionado a descobrir e identificar os elementos das tradições, da história e da cultura do lugar onde atuam e utilizá-los como elementos constitutivos da própria gestão.
3. Toda organização requer compromisso com metas comuns e valores compartilhados, de forma a ter objetivos simples, claros e unificantes; e metas conhecidas pela população, que são constantemente reafirmadas. A primeira tarefa da gestão é pensar, estabelecer e exemplificar esses objetivos, valores e metas.
4. A gestão capacita a organização e cada um de seus componentes a crescer e a se desenvolver à medida que mudem as necessidades e oportunidades. Toda organização é uma instituição de aprendizado e de ensino. Daí a importância de treinamento e desenvolvimento em todos os níveis.
5. A instituição está ancorada na comunicação e na responsabilidade individual. Para executar bem seu trabalho, todos os seus componentes consideram e comunicam com clareza aquilo que oferecem aos outros e aquilo que recebem deles. E cada assume aquilo que lhe diz respeito, colaborando com todos.
6. Como um ser humano, a organização necessita de diversos indicadores para avaliar sua saúde e desempenho. Para as empresas, por exemplo, valem os indicadores de posição no mercado, inovação, produtividade, desenvolvimento do pessoal, qualidade e resultados financeiros. As instituições não lucrativas e religiosas também criam instrumentos para medir as questões específicas de sua missão. Assim, o desempenho está entranhado em qualquer organização e na sua gestão. Deve ser medido, julgado e continuamente melhorado.
7. O resultado de uma instituição é exterior a ela, está no seu público-alvo ou destinatários. Assim, o resultado de uma empresa é um cliente satisfeito, de um hospital é o paciente curado, de uma escola é o aluno que aprendeu algo que usará no correr da vida, e da pastoral social é o cristão atuando na transformação da sociedade.

As palavras-chave dos princípios essenciais da gestão seriam então: capacitação de pessoas para atuarem em conjunto, inserção na cultura, compromisso com metas e valores compartilhados, aprendizado constante, comunicação e responsabilidade, critérios de desempenho, resultado focado em seu destinatário.
Portanto, gestão profissional é muito mais do que administrar, tomar conta do dinheiro, ou zelar do patrimônio. Consiste no meio eficaz de conduzir as organizações, para que elas realizem sua missão. A gestão leva em conta as pessoas, a finalidade da instituição e seus valores, os processos internos, o que a organização oferece aos seus interlocutores ou clientes, a relação com a sociedade, bem como a necessidade de sobrevivência e continuidade (viabilidade econômico-financeira). Então, qual o lugar que a gestão profissional tem na Vida Religiosa e nas instituições por ela mantidas?

2. Gestão nas instituições de religiosos(as)
A gestão não é algo determinante na identidade dos consagrados(as), nem no discernimento em vista da missão. Não consiste em instância de salvação para a Vida Religiosa. Ao contrário, pode levá-la à asfixia espiritual. A prioridade reside no carisma e na espiritualidade. Inverter essa ordem seria desastroso para a liberdade espiritual dos seguidores de Jesus. A Vida Religiosa é bem mais do que as instituições e organizações que ela eventualmente mantém, como escolas, hospitais, mídias, gráficas, paróquias e iniciativas sociais. Há que se evitar equívocos, como por exemplo, substituir a opção pelos pobres (profetismo e carisma) por gestão da filantropia. A primeira é muito mais do que a segunda.
A gestão ganha importância no momento em que se faz a ponte entre o desejo e a realização, a proposta da missão e sua efetivação. Quanto mais desafiadora e complexa uma situação, mais será necessário liderar, organizar, empreender, planejar, executar, avaliar e aprender. Para isso, é necessário desenvolver habilidades (saber fazer) e conhecimentos apropriados. Seu lugar é irrenunciável como instrumento para alcançar resultados efetivos. Pois, como lembrava São Tiago, a fé sem ação é morta.
É comum ouvir de conselheiros provinciais, que também são membros da diretoria de mantenedoras, a expressão: “Eu não entendo nada disso”, quando tratam de assuntos de gestão organizacional. Diante de sérias decisões a tomar, limitam-se a acompanham o parecer do ecônomo(a), ou de sua assessoria leiga, sem questionar ou enriquecer a reflexão. E ainda arrematam: “Não é a minha área. Confio plenamente em vocês”. Essa é uma forma de se eximir da responsabilidade que lhes foi delegada. Mesmo que a pessoa não tenha formação básica em gestão, deve-se munir de instrumentos mínimos que lhe dêem condição de desempenhar sua tarefa com propriedade, pelo tempo que lhe foi confiada.
O(a) provincial e seu conselho têm como primeira tarefa animar e governar a vida religiosa. Mas, se a congregação fez a opção de conduzir obras (instituições formais de prestação de serviços), as pessoas que compõem a equipe de animação e governo também devem aprender a ser gestoras. Evidentemente, aquelas que desempenham cargos diretivos na mantenedora (instância civil) necessitam maior preparação do que seus parceiros(as) no conselho provincial que estão empenhados em outras áreas, como a formação inicial dos consagrados, a evangelização nas comunidades eclesiais, a inserção nos meios populares, ou a animação de uma pequena iniciativa. Todos precisam desenvolver as habilidades mínimas de pensar a província ou a congregação em termos complexos de desempenho, submetendo-os ao crivo crítico e construtivo do carisma. Só quem conhece bem uma questão, sob muitos ângulos, toma decisões acertadas, iluminadas pela fé. Sem este suporte, a boa intenção pode conduzir a opções equivocadas.

As congregações precisam formar seus quadros dirigentes também na perspectiva da gestão. Mas há perguntas vitais que acompanham esta opção: que modelo de gestão irão adotar? A gestão está a serviço de qual projeto de Igreja e de sociedade? Ela visa simplesmente manter e desenvolver o que já existe ou dará as condições para realizar novos sonhos?
Na equipe de animação e governo de determinada congregação há perfis e formações profissionais distintas, mas compete a todos(as) a dupla missão de animação religiosa e de coordenação organizacional. Ao provincial e seu conselho cabe ser simultaneamente pastores(as) e gestores(as). A imagem também se aplica às pessoas que animam processos de evangelização. Ser pastor(a) é cuidar das pessoas, fazer um itinerário de fé junto com elas e abrir-lhes novas perspectivas para viver. Ser gestor(a) significa coordenar processos de forma organizada, ter resultados mensuráveis a alcançar e zelar pela viabilidade da iniciativa.

3. Gestão e carisma
Vamos resumir algumas convicções sobre este polêmico tema, que envolve a relação do carisma com as chamadas “obras” tradicionais.
a) Os religiosos(as) e suas instituições encontram a razão de ser na missão, no carisma e na espiritualidade. Foram fundadas para responder a apelos suscitados pelo Espírito, captados e interpretados pelos fundadores. Seus membros e colaboradores se propõem a viver o seguimento de Jesus de uma maneira própria, servir à Igreja na evangelização e na promoção da vida, em toda a sua extensão. A fidelidade à sua identidade exige tanto um olhar para trás, baseando-se nos seus fundamentos e sua identidade originante, como para frente, atualizando a missão e reinterpretando o carisma e espiritualidade. Olhar de memória, companhia e profecia, com os pés no chão, continuando o movimento inaugurado por seu mestre e Senhor, com a dinâmica da encarnação. Encarnar-se é aceitar as belezas e as contingências da história humana, experimentar no presente a promessa, viver da esperança, semear a eternidade na realidade humana.
b) Os consagrados, em distintas famílias religiosas, configuraram historicamente sua missão através de instituições formais, denominada como obras. Algumas, desde o começo, destinaram-se aos pobres, tais como creches, asilos, casas-lares. Outros, embora tenham nascido com destinação preferencial para os mais necessitados, lentamente se voltaram para as elites. Como comportavam uma prestação de serviços com remuneração, foram forçadas, na sociedade moderna, a se organizarem de forma empresarial, especialmente para enfrentar a crescente concorrência. As obras são uma forma histórica de concretização do carisma, e não o carisma mesmo.
c) Nos últimos 30 anos, as comunidades religiosas inseridas e outras novas formas de presença e atuação dos consagrados(as) mostraram que a missão se realiza de múltiplas formas, de acordo com os sinais dos tempos. Muitas congregações redescobriram seu carisma e sua espiritualidade quando abandonaram as obras tradicionais, simplificaram o estilo de vida, reduziram as estruturas e favoreceram novas presenças junto aos pobres e necessitados. Compete a cada instituto discernir se vale a pena continuar com suas obras e que orientação dará a elas. Essa é uma questão que antecede a gestão profissional, pois diz respeito ao discernimento em vista da fidelidade à missão. Aqui se joga um dos elementos decisivos para o presente e o futuro da vida religiosa.
c) Se uma congregação opta por manter e ampliar suas iniciativas de prestação de serviços, como escolas e universidades privadas, hospitais, gráficas, editoras, deve se organizar de forma profissional. Desenvolver a competência da gestão se torna então uma necessidade ineludível. Mas ela vai acompanhada da espiritualidade e dos valores da congregação, para manter sua alma, identidade e finalidade última. Se o modelo de organização empresarial contamina o interior da Vida Religiosa, suas motivações, o estilo de viver e conviver, corrói na base a identidade dos consagrados.
d) Dependendo da complexidade e do tamanho das iniciativas, trata-se de adotar os princípios de gestão empresarial, colocando limites. E sobretudo, criticá-los construtivamente à luz do seguimento de Jesus e da opção preferencial pelos pobres. Isso significará necessariamente a constituição de organizações renovadas, que simultaneamente cultivam a competência profissional, a cultura da solidariedade, a consciência ambiental e planetária.
e) A grande parte das congregações religiosas nasceu para responder a uma necessidade gritante de seu tempo. Os fundadores tinham um olhar privilegiado para os pobres e os necessitados. O mundo contemporâneo pede iniciativas organizadas pela sociedade civil, visando à superação da pobreza, da marginalidade, da exclusão social, e da destruição dos ecossistemas. Aumenta a consciência de que a globalização dos mercados sem a globalização da solidariedade levará o mundo ao caos. Há uma tendência generalizada de crescimento do terceiro setor, ou seja, das iniciativas privadas com finalidade social, atuando em parceria com os órgãos governamentais, empresas e ONGs. Os religiosos(as) têm em sua origem a opção preferencial pelos pobres. Na sua história recente, devido à teologia da libertação e as comunidades inseridas nos meios populares empenharam-se nas lutas das mulheres, dos negros, dos índios, dos direitos das crianças e dos adolescentes. De forma compartilhada, iniciaram uma metodologia original de atuar junto aos setores populares, favorecendo seu protagonismo. Desenvolveram então um conhecimento aplicado original sobre o mundo dos pobres. Este fato de estar afetiva e efetivamente “nas fronteiras da sociedade” dá aos grupos cristãos condições ímpares de serem novamente pioneiros no terceiro setor. Para alcançar tal escopo, não basta somente boa vontade.

É necessário aplicar e reinterpretar os princípios de gestão e especialmente, focar em resultados.Um grande desafio da Vida Religiosa no presente e no futuro será desenvolver a habilidade de gestão, nos mais diversos âmbitos, em sintonia com os valores e o espírito profético e místico que a anima.