sábado, 26 de abril de 2008

Quatro telas para ver o mundo


Eu estava num encontro de religiosas, em Salvador. Uma Irmã alemã, muito lúcida, levantou-se e disse: “As nossas jovens hoje vêem o mundo com três telas”. E explicou: A tela do computador, a tela da Televisão... Enquanto ela respirava, passei na mente com rapidez a pergunta: “E qual será a terceira?” Ela acrescentou: “A terceira tela é o espelho”.

Penso que este fenômeno, embora toque mais de perto os jovens, contagia uma parcela crescente da população, inclusive quem lê agora este texto do blog. E cada tela tem um verso e um reverso ético. A informática, especialmente pela Internet, nos abre possibilidades inusitadas de acessar informações de todo o mundo, com rapidez incrível. Favorece a criação de comunidades e redes virtuais, enlaçadas a partir de múltiplos interesses. Com a crescente inclusão digital, a internet possibilita a criação de um planeta de fato global, para além das fronteiras locais. É fantástico ver o mundo com a tela do computador. Abrir múltiplas janelas de edição de texto, jogos, planilhas, clips, edição de fotos....

Mas o mundo virtual tem o seu perigo. Ele pode se tornar um pseudo-mundo, o das simulações, o da imagem que se sobrepõe à realidade e cria um simulado que parece melhor que o real. O cyber-espaço do exibicionismo e das redes de pornografia aprisiona milhares de pessoas. Cria-se um canal de futilidades, uma droga que atordoa as consciências.

Algo semelhante acontece com a tela da TV. Cada vez mais, na sociedade brasileira, o que não aparece na televisão simplesmente não existe. O real é aquilo que se torna movimento visível na telinha. Além disso, a TV é mais elitizada que a Internet, no que diz respeito à produção e divulgação da informação, pois é refém do poder econômico e dos políticos. Em contrapartida, a televisão é um dos poucos espaços baratos de entretenimento. Dramas, comédias, noticiários, documentários, as famosas novelas, tudo isso nos abre também mundos. E nos faz ver o nosso próprio mundo, embora com os olhos dos outros.

Por fim, o espelho, outra tela ambivalente. De um lado, como é bom se ver no espelho, reconhecer-se, olhar a própria face. E, a partir da imagem invertida, poder cuidar de si. De outro lado, o espelho é o instrumento que literalmente define o narcisista. A pessoa narcisista olha para si a partir de si, como se o mundo não passasse dos estreitos espaços de seu próprio umbigo. Com ou sem piercing.

As três telas, do computador, da televisão e do espelho, oferecem riscos e oportunidades. São ambivalentes como quem as criou e delas se alimenta. Talvez o grande problema é que as pessoas olhem o mundo somente com estas telas. O terrível é quando a tela substitui o olhar livre e soberano da pessoa. E quanto mais acessos diversificados tivermos para ver o mundo, mais completo e tolerante será nosso olhar.
Creio que falta, no mínimo, uma quarta tela. O filósofo judeu-francês Emanuel Levinás dizia que o ser humano só se reconhece no olhar do outro. E aí reside o fascínio e as imensas possibilidades da relação interpessoal, que se abre para o comunitário e o social. Reconhecer-se no olhar, no sorriso, nas angústias, nas esperanças que são tecidas nas relações vivas e diretas entre as pessoas é maravilhoso e desafiador. As telas se completam com as teias. As imagens, com as relações vivas e calorosas. Então, faço um convite a você: Vamos ver o mundo com várias telas e tecer muitas teias de vida?

terça-feira, 22 de abril de 2008

Consumir e gozar!


Mônica Bérgamo noticiou na sua coluna da Folha de São Paulo, no dia 14 de abril, que setenta empresárias e socialites se reuniram numa mansão em São Paulo, para ouvir uma palestra do "filósofo do luxo" Silvio Passarelli. Elas assistiram à palestra "O Seu Tempo É o Seu Luxo", em que o economista falou do prazer inigualável do consumo sem grilos ou culpas de qualquer espécie.

Conforme Passarelli, o atual liberalismo inaugurou a era do padrão individual de escolhas. Mas, de nada adianta acumular os bens se não temos tempo para usufruí-los. A grande batalha do século 21 será Consumir e gozar, consumir e gozar! E não estocar". E acrescenta: "Sabe a Imelda Marcos [ex-primeira-dama das Filipinas] e os 500 calçados? Será que ela os conhecia a todos? Será que estabeleceu com cada um deles uma história pessoal?"

Passarelli insiste na idéia de que as pessoas têm que melhorar o seu estoque de tempo. "Vamos perder a vergonha quando alguém perguntar: O que você vai fazer amanhã? Nada! Eu comprei um carro novo e vou passar o dia dedicado a esse brinquedo que eu me proporcionei. É preciso tempo para que o projeto emocional que o levou a adquirir aquele bem possa ser explicitado". Assim, deve-se "gradativamente trocar compromissos inúteis pelos úteis na busca de uma nova ética de consumo, que não seja marcada pela condenação de um produto supérfluo. Ora, quem tem condição de dizer o que é supérfluo? É supérfluo para ele, mas pode ser a diferença entre felicidade e tristeza para outro".

A colunista da Folha comenta que as mulheres aclamaram com euforia as palavras do dito professor e que agora se sentem mais à vontade para consumir o luxo, sem culpa.

As idéias de Passarelli levam a ideologia do consumismo ao seu ápice. Não basta o prazer de comprar. É preciso cultivar o gozo de usufrir, de forma egoísta, dos bens adquiridos. Estranhamente, não se fala, em momento nenhum, do prazer de estar junto com os outros, de estabelecer laços de qualidade, de saborear as coisas simples da vida, de estar aberto ao que é gratuito. O defensor do luxo chega ao absurdo de perguntar se a mulher do ex-ditador das Filipinas, que acumulou imensa riqueza à custa da exploração de seu povo, estabeleceu com um dos seus quinhentos sapatos uma história pessoal. Ora, nenhum ser humano com valores profundos estabelece relação pessoal com sapatos. E sim, com pessoas. Alguém pode gostar de maneira especial de um objeto pessoal e sentir falta dele, mas criar vínculos pessoais, isso é para os relacionamentos.

O consumo de luxo é a manifestação patente da concentração de riqueza, que gera opulência de um lado, e exclusão social de outro. Além de impactar no meio ambiente. Pois quem faz do lema de sua vida o consumo e o gozo não tem no horizonte nem a humanidade, nem o nosso planeta.

A máxima “consumir e gozar. E não estocar!” é a degeneração de algo bom. Aprender a fruir o presente, cultivar a alegria e o gozo, deliciar-se com as pequenas coisas da vida são aspectos enfatizados por grandes místicos e sábios. Um ser humano maduro, espiritualmente evoluído, aproveita bem o tempo, curte as experiências gratificantes e faz memória dos acontecimentos significativos. Há pessoas que se sentem verdadeiramente felizes por serem solidárias, por cuidar do meio ambiente e das outros, especialmente os mais fragilizados, como as crianças, os anciãos e os empobrecidos. Onde reside a diferença? Em perceber que as satisfações não são uma finalidade em si mesma, mas são experimentadas e interpretadas dentro de um projeto de vida que tem uma direção para o Bem. Então, poderemos criar outras máximas, mais conseqüentes, como: Cuidar e fruir! Amar e se alegrar!

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Insetos sociais?


A Edição de 16 de abril da Folha de São Paulo exibe na parte inferior da primeira página uma foto e um comentário que são, no mínimo, causa de incômodo. A imagem retrata no mínimo 15 homens algemados, que segundo a polícia, estariam a serviço do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Basta olhar os detalhes: a grande maioria é afro-descente, e jovem! No primeiro plano da fotografia, em perspectiva aérea, um membro do temido Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia), imortalizado no filme “Tropa de Elite”. E no comentário, se diz que para o comandante de policiamento da cidade, a PM é um inseticida social.

Passei pelo Rio de Janeiro, uns dias antes. A assim chamada “Cidade Maravilhosa” recebeu o apelido de “Cidade da Dengue”. Havia, de fato, uma epidemia. Estranhamente, o poder local, inepto para tratar do “inseto literal”, o mosquito que causa a dengue, se acha no direito de tratar seres humanos como “insetos sociais”. A coisa não é tão simples assim. Sabemos que muitas pessoas envolvidas no tráfico de drogas foram vítimas e agora são protagonistas de processos de complexos violência e exclusão social. Ao mesmo tempo que é preciso punir a contravenção, é necessário promover pessoas e grupos, alimentar a esperança da juventude, abrir perspectivas de vida para os pobres.

Na minha estada no Rio de Janeiro, estive com um grupo de cinqüenta pessoas, religiosas(os) e leigos que atuam em centros sócio-educativos com crianças e jovens em situação de risco pessoal e social. Chamou-me a atenção o depoimento de uma Irmã, que, com alegria, apresentou dois jovens afro-descendentes, que tinham sido educandos de determinada “Obra Social”. Eles agora atuam como educadores junto a outros jovens. Felizmente, para eles, a abordagem não foi a da inseticida. Em vez insetos sociais, foram considerados como pessoas humanas, com o grande potencial que tinham a desenvolver. O resultado, é uma outra foto. Não a de jovens amarrados e sem perpectiva. E sim, de pessoas que semeiam esperança e cidadania. Amém!