domingo, 31 de maio de 2009

Pentecostes: descobertas do Espírito

Na minha vida, posso identificar três grandes descobertas sobre o Espírito Santo.

A primeira aconteceu quando eu era adolescente e morava em Uberaba. Fiz um “retiro de renovação no Espírito”, sob a animação do Padre Haroldo Rahm. Este acontecimento inesperado gerou em mim muitas experiências belas e tatuagens indeléveis. Aprendi a rezar com o coração, a provar a beleza da prece de louvor, da oração em comum e de nutrir-me com o testemunho de vida dos outros. Resumo esta descoberta assim: “O Espírito de Deus habita no coração dos fiéis”. Ele clama em nós, para que o nosso ser caminhe em direção a Deus. Certa vez, quando fui ao um dia de oração, o Ir. Aleixo Maria Autran, de saudosa memória, nos recordou que quando oramos, o Espírito de Deus fala em nós. É como um rio subterrâneo. Quem reza busca a água no poço. Ela já está lá, basta puxá-la com o balde, a cacimba ou a bomba hidráulica.
Várias músicas da renovação carismática traduzem esta forma de provar o Espírito de Deus. Gosto muito de uma que diz: “Renova-me Senhor com teu Espírito, renova-me Senhor. Então eu sentirei teu fogo de amor, aqui no coração, Senhor”.

A descoberta seguinte veio uns tempos depois. Participei do “Concílio de Jovens”, organizado pela comunidade ecumênica de Taizé, em Vitória e posteriormente em Lins. Quando entrei no noviciado, fui atuar nos fins de semana numa periferia de Campinas. Ali conheci de perto a Igreja dos pobres, a teologia da libertação, o início das comunidades da base. Percebi que o Espírito Santo não agia somente no coração de cada pessoa de bem, e sim também em todos aqueles que comunitariamente se empenham para construir uma nova sociedade. Os muitos anos de convivência em comunidades populares na periferia de Montes Claros e Belo Horizonte me possibilitaram conhecer pessoas extraordinárias no meio dos pobres. Lembro-me delas quando recordo da oração de Jesus, que sob a força do Espírito exulta de alegria: “Eu te bendigo, Pai, porque escondestes estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos” (Lc 10,20s). Desde então tenho lutado para ampliar a consciência de adultos e jovens, para mostrar-lhes que a fé comporta necessariamente um compromisso social. É emblemática a música de Zé Vicente, que diz: “Quando o Espírito de Deus soprou, o mundo inteiro se iluminou. A esperança na terra brotou, e um povo novo deu as mãos e caminhou”. Inspirados nos profetas bíblicos e no próprio Jesus, em quem o Espírito de Deus repousa (Lc 4,14.18), fazemos parte dessa grande e pouco visível corrente dos que acreditam num novo projeto de sociedade, suscitado pelo mesmo Espírito, que faz novas todas as coisas (Ap 21,5).

A última descoberta do Espírito, mais recente e igualmente importante, veio da minha participação no movimento ecológico e do que isso estimulou em mim. Certa vez, quando observava a desova de tartarugas marinhas no litoral do Espírito Santo, vi uma voluntária, bióloga, que retirava cuidadosamente as cascas dos ovos para ajudar os filhotes que, por si só, não conseguiram eclodir da areia quente e caminhar para o mar. Alguém lhe perguntou: “Porque você está fazendo isso?”. Ela respondeu, com brilho no olhar: “Estou cuidando da Vida”. Jamais esqueci esta cena. O engajamento nas grandes causas ambientais leva os cristãos a perceber que a ação do Espírito de Deus é bem anterior à constituição de uma religião. No primeiro versículo da bíblia se afirma que “o Espírito de Deus pairava sobre as águas (Gn 1,1)”. O teólogo contemporâneo J. Moltmann afirma no seu livro “Deus na criação”, que o Espírito Santo é a força de Deus que molda a unidade na diversidade, a começar da evolução do cosmos, passando pela biodiversidade e a convivência humana e chegando até o mistério da Trindade. Ampliei então minha percepção sobre algo que eu rezava e cantava muitas vezes: “Envia teu Espírito Senhor, e renova a face da Terra” (Salmo 104,30). O Espírito Santo é também a grande força evolutiva que sustenta e renova a criação. Por isso, cuidar do nosso planeta, frear o processo destrutivo que está em marcha e garantir a sustentabilidade é ouvir um apelo de Deus, cujo Espírito geme nas criaturas (Rm 19,22).

Neste dia de Pentecostes, creio que estas três dimensões do Espírito Santo são fundamentais para viver a fé contemporaneamente: experimentar a Deus na subjetividade, ouvir seu apelo na realidade e sintonizar com Ele em todas as criaturas. Que esta chama divina nos ilumine, nos aqueça e nos encante. Amém!

Texto: Afonso Murad
Gravura: Ir. Anderson,msc

sábado, 16 de maio de 2009

Xapuri e Chico Mendes

Saí de Rio Branco, numa manhã ensolarada. Com mais outros passageiros, lotamos um taxi que faz o trajeto até Xapuri, situada a aproximadamente 170Km da capital do Acre. Estamos em plena região amazônica, em região banhada pelo Rio Acre, afluente do Purus, que deságua no Amazonas. Depois de algumas voltas e muitas paradas - este é o jeito de viajar aqui, pois não se sabe bem nem a hora da partida e muito menos a da chegada – terminamos a viagem em Xapuri. Esta cidade ficou conhecida no mundo devido a Chico Mendes, líder “dos povos da floresta” e ecologista.
Xapuri recebeu este nome de uma tribo indígena da região. Se voltássemos ao tempo uns 120 anos atrás, veríamos uma cidade florescente, chamada de “princezinha do Acre”, devido ao ciclo da borracha. Como a região era rica em seringueiras, árvore nativa da Amazônia, serviu de entreposto para a venda da resina natural de borracha. Ao visitar o museu da cidade tive surpresas: Xapuri foi uma importante cidade comercial e centro cultural. Recebia grandes embarcações vindas da Inglaterra. Havia até um cinema importante no início dos anos 1900. Mas tudo isso acabou quando os mesmo ingleses, protagonistas da primeira fase do capitalismo industrial, levaram clandestinamente sementes da seringueira para Ásia. Após alguns anos, toda a região amazônica sofreu uma rápida decadência econômica.
Durante a segunda guerra mundial, a produção asiática de borracha se interrompe. Os americanos pedem ao governo brasileiro que retome urgentemente a produção de borracha. E assim se fez, estimulando o deslocamento em massa de população nordestina, que passa a ocupar os seringais. Também este ciclo econômico é quebrado após o final da guerra, acentuado com o incremento da borracha sintética. O que conhecemos hoje como “povos da floresta” é a mescla de ribeirinhos tradicionais, populações indígenas que sobreviveram à violência dos seringalistas da primeira fase e os descendentes de migrantes nordestinos.
Nos anos 70, o governo militar estimula a criação de grandes fazendas de gado na região. O modelo de desenvolvimento é perverso: leva à total destruição da floresta e à expulsão de seus moradores. No seu lugar, surgem latifúndios que alojam projetos agropecuários, cuja principal finalidade é produzir carne para exportação, especialmente para os Estados Unidos.
Neste contexto, surge um importante movimento popular. Ele é a conjugação de forças sociais que se aglutinam em torno à CONTAG (confederação dos trabalhadores da Agricultura), aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e às Comunidades Eclesiais de Base, da Igreja Católica.
Conversei com lideranças da Igreja que naquela época iniciaram um lento trabalho de conscientização das lideranças populares. Desciam os rios visitando as comunidades ribeirinhas, penetravam nas florestas, faziam celebrações, ajudavam o povo a ler a bíblia com olhos críticos. Deste lento e intenso trabalho de educação popular à luz da fé surgem grandes figuras. Chico Mendes é uma delas.
Chico Mendes aprendeu a ler com o pai e era semi-alfabetizado. À medida que se comprometia com a causa da Amazônia e do seu povo, teve que aprender sozinho, como auto-didata. Com seus companheiros, mulheres e crianças, organizava o “empate”, movimento que impedia os “colonos do sul” e seus tratores ocupassem os seringais, destruíssem a floresta e plantassem no lugar o capim para o gado.
Aqui em Xapuri se respira algo deste clima de luta e de consciência. A cidade, onde predominam bicicletas nas ruas e o transporte de muitas mercadorias se faz com carro de bois, hoje tem orgulho do seu filho ilustre, incompreendido na época.
É emocionante visitar a casa de Chico Mendes (foto). Praticamente tudo está preservado. Reina a simplicidade, o essencial. Chico conseguiu comprar esta casinha na cidade um ano antes de ser assassinado. Nela morou breve período com a mulher e suas duas crianças. Na porta da cozinha ele foi assassinado por pistoleiro, a mando de um grande fazendeiro da região, no dia 22 de dezembro de 1988. Naquelas alturas, Chico Mendes já havia recebido dois prêmios internacionais pela sua luta em defesa da Amazônia. Sua proposta, realizada anos mais tarde, era de transformar a região em reserva extrativista. Ou seja, manter a floresta, possibilitando aos seus moradores o manejo sustentável de madeira, castanha, borracha e outros produtos locais.
Próximo à casa de Chico Mendes há um museu, com objetos pessoais, a toalha manchada de sangue na hora da morte, belas fotos e painéis que contam sua história e sua luta. No momento em que a humanidade redescobre a importância da Amazônia para o equilíbrio do clima (sobretudo a captura de carbono e o ciclo das chuvas) e a riqueza incalculável da biodiversidade, a figura de Chico Mendes ecoa com mais vigor. É preciso recordar a memória deste profeta e visionário. Mais ainda, é necessário somar pessoas e organizações pela defesa da Amazônia e de tudo o que ela significa para nosso mundo.Lembremo-nos de suas palavras: “No começo, pensei que estivesse lutando para salvar seringueiras. Depois, pensei que estivesse empenhado em salvar a floresta amazônica. Agora percebo que estou lutando pela humanidade”.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

A ressurreição: uma descoberta

Neste ano, participei da celebração pascal numa comunidade pobre, de uma vila na periferia da cidade. O celebrante, de uma forma criativa, nos estimulou a partilhar quais são os “sinais de ressurreição” na nossa vida. Uma pessoa lembrou-nos da luta das pessoas sem casa, que conquistaram o direito de moradia. E ela estava envolvida nesta luta. Outra recordou das duas senhoras idosas, que apesar de todos os limites de saúde física, se deslocam cada domingo de suas casas para celebrar com alegria! Tocou-me especialmente o depoimento do Dona Efigênia, uma das líderes da comunidade, que participa ativamente da organização do povo, tanto religiosa quanto social. Ela disse: “Faz muitos anos, eu vim para a cidade, com meu marido e sete filhos. Logo depois que chegamos, ele ficou desempregado. Então, foi um tempo muito difícil. Eu lavava roupa para sustentar a família. Trabalhava até de noite. Hoje, depois de tantos anos, agradeço a Deus, porque vencemos as dificuldades, e nossos filhos já estão todos criados”.
Quando terminou a celebração, fiquei saboreando estes belos testemunhos. E me perguntei porque temos tanta dificuldade em perceber os “sinais da ressurreição”, e muitas vezes continuamos “no túmulo”. Deveríamos celebrar mais as vitórias, os sinais de vida, os frutos da ressurreição.
No fundo, há um problema no discurso religioso corrente no meio cristão. Afirma-se muitas vezes que “Cristo nos salvou pela morte na cruz”. Isso é verdade, mas toca somente uma parte da experiência salvífica cristã. Na realidade, a comunhão com Deus, que leva o ser humano a realizar seus anseios mais profundos, que denominamos “salvação”, nos é oferecido pelo nascimento, pela vida, pela morte e pela ressurreição de Jesus. Não somente pela morte.
Os evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) nos dizem que Jesus é o messias, o salvador, que inaugura o Reinado de Deus (Mc 1,15) e manifesta o Deus do Reino. Pelos gestos e as palavras de Jesus, a salvação já começou! O evangelista Lucas diz isso de forma breve, no encontro de Jesus com Zaqueu: Hoje a salvação entrou nesta casa (Lc 19,9).
O apóstolo Paulo usa várias imagens de seu contexto cultural para interpretar o que significou a morte de Jesus: libertação do pecado, vitória sobre a morte, vida entregue, redenção da escravidão do pecado, expiação, morte do justo (2 Cor 5,15; Rm 6,10, Gl 2,20, Ef 5,2). Nenhuma delas, de forma isolada, dá conta de explicar o sentido salvífico de sua morte.
O mesmo Paulo anuncia que a ressurreição de Jesus também é salvadora. Jesus, o ressuscitado, é o primogênito, o verdadeiro Adão, o primeiro membro da nova humanidade (Cl 1,15.18). Em Cristo ressuscitado, somos novas criaturas!
Portanto, Jesus nos salvou por sua vida (gestos e palavras), morte e ressurreição. A ressurreição é salvadora, porque antecipa, já neste mundo, a vitória de Deus e do Bem, sobre as forças do mal e da morte.
Nos relatos dos evangelhos e nos Atos dos Apóstolos, aparecem os frutos da ressurreição na vida dos cristãos. Dois deles me tocam especialmente: a coragem e a paz. Os mesmo discípulos, que fugiram de medo, no momento da morte de Jesus, quando experimentam sua ressurreição, são capazes de enfrentar as autoridades e sustentar com firmeza: “Este Jesus, que vocês mataram, Deus o ressuscitou. E nós somos testemunhas disso!” Quando Jesus vem ao encontro dos seus discípulos, que estavam trancados na sala, lhes dá coragem e paz! Coragem para enfrentar as dificuldades e paz para ter serenidade no coração. Que este Jesus ressuscitado nos dê, hoje, coragem e paz. E que cultivemo um olhar encantado, para reconhecer os sinais de ressurreição. Amém.

Figura: Painel do ressuscitado. Frei Anderson, msc.
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