sábado, 13 de fevereiro de 2010

Espiritualidade na gestão (1)

Estive em Santa Catarina, nas cidades de Florianópolis, Criciúma e Itajaí, trabalhando com educadores de Escolas com o tema “Gestão e Espiritualidade”. Partilho com você uma parte da reflexão, retirada do meu livro.

A espiritualidade é como a seiva que circula no interior da árvore. As pessoas não a vêem, mas ela garante a vida e a fecundidade. Quando alguém saboreia uma manga doce e cheirosa, nem sequer pensa na seiva da mangueira. Mas, sem ela, o fruto não existiria. A espiritualidade se tornará algo importante à medida que as pessoas e as instituições superem a cultura da aparência e da exterioridade.
Se a espiritualidade é importante para a vida das pessoas e das organizações, por que efetivamente ela ocupa um lugar tão pequeno? Por que os próprios gestores, à medida que se embrenham no mundo da administração e dos negócios, nas grandes instituições, se tornam, não poucas vezes, mais auto-suficientes (e arrogantes) e menos espiritualizados? A tentação do poder seduz os gestores, a ponto de desviá-los da finalidade para qual trabalham. As pessoas e as organizações devem estar atentas e vigilantes, a fim de que as coisas urgentes não tomem o lugar das importantes, e os mecanismos de eficácia se sobreponham aos valores.
Para que os gestores mantenham acesa a chama do “amor primeiro” a Jesus e à sua causa, é fundamental cultivar a espiritualidade, nutrir a interioridade.

O gestor(a) de uma organização é uma pessoa pública. Constantemente, está em contato com muitas pessoas, e tem múltiplas tarefas a realizar. Então, é comum que o ritmo louco da vida moderno faça dela uma pessoa de muitas mãos, pouca mente e coração pequeno. Na linguagem religiosa, isso se chama “ativismo”: desgastar-se trabalhando muito, mas realizando pouco, e com qualidade duvidosa. O cultivo cotidiano da espiritualidade ajuda o gestor(a) a romper com este círculo vicioso. Pois ele se mantém enraizado(a) em Deus e conectado consigo mesmo. As duas coisas vão juntas, impreterivelmente: Vigiar e orar, diz Jesus. Estar com a consciência alerta sobre si mesmo e voltar constantemente à fonte da vida.

Para viabilizar o silêncio fecundo, no qual o Senhor pode falar ao coração, a pessoa deve criar diariamente um breve momento de oração pessoal. Se isto não for possível, ao menos três vezes na semana. Para os iniciantes, dez minutos parecem uma eternidade. A mente dispersa demora a se apaziguar. E quando a pessoa se recolhe, então aí afloram as preocupações e se manifesta o estado de dispersão da mente. Mas é preciso seguir avante no caminho espiritual, aumentando o espaço interior, com qualidade e quantidade. Para os perseverantes, o tempo de mergulhar em Deus se dilata. A meditação deixa de ser um peso ou uma dificuldade, para ser uma necessidade.
A mística cristã contemporânea alimenta-se sobretudo da leitura orante da Palavra de Deus. Não se trata de reflexão, mas de escuta atenta, envolvendo a mente, o coração e a imaginação. Também é positivo orar sobre a prática da gestão, de muitas formas: entregar a Deus um novo projeto, suplicar-lhe ajuda nos tempos difíceis, pedir perdão, agradecer-lhe com alegria, oferecer-lhe as conquistas e o sucesso, pedir sabedoria antes de tomar decisões importantes.
Viver a espiritualidade na gestão exige fazer silêncio e se retirar, nos momentos mais exigentes.

A oração de discernimento ganha aqui especial valor. Nela, colocam-se às claras os valores e fatores que irão influenciar uma decisão, tanto os elementos favoráveis quanto os contrários. Às vezes, não é possível escolher entre duas coisas boas, mas entre o que é menos ruím. Neste momento, o ser humano percebe sua fraqueza e limitação. Reconhece e assume o risco da decisão a tomar. Sabe que, mesmo que tenha pensado e rezado muito, pode errar. Por isso mesmo, mantém a humildade em aprender com os acertos e os erros.
Nutrir a interioridade significa ainda purificar constantemente suas motivações, para que a pessoa não se engane, e perceba quando a vaidade, a ira, o senso de competição ou o desejo político de “se manter por cima a todo custo” lhe assediam.
O cultivo da espiritualidade favorece a liberdade interior. Não se trata de subestimar os resultados, ou substituí-los pela cultura da “boa intenção”, pois isso é desastroso para a instituição. Mas sim, ao fazer tudo o que lhe está ao alcance da mão, o gestor(a) percebe-se peregrino e mantém a serenidade de quem repousa em Deus. Assim reza poeticamente Dom Hélder Câmara:
Bendito sejas, Pai, pela sede que despertas em nóspelos planos arrojados que nos inspiras,pela chama és Tu mesmocrepitando em nós...Que importa que a sedefique em grande parte insatisfeita?... Ai dos saciados!

(Fonte: Afonso Murad, Gestão e Espiritualidade, Ed. Paulinas, 3 ed, 2009)

sábado, 6 de fevereiro de 2010

A Igreja precisa de reforma urgente

Recentemente, circulou na internet a carta aberta a Bento 16, escrita pelo Padre Henri Boulad, jesuíta egípcio-libanês, de 77 anos. O autor é muito respeitado. Reitor do Colégio dos jesuítas no Cairo, foi professor de Teologia no Cairo, vice-presidente da Cáritas Internacional para o Oriente Médio e a África do Norte, e Presidente da Conferência dos Religiosos no Egito. Anualmente, dá conferências pela Europa e Ásia, para públicos diversificados. Visitou cerca de 50 países nos quatro continentes e publicou cerca de 30 livros em aproximadamente 15 línguas, sobretudo em francês, árabe, húngaro e alemão. Sua última obra traduzida no Brasil é: Deus e o mistério do tempo (Loyola, 2006). De forma contundente, a carta aponta alguns limites na Igreja atual e propõe grandes mudanças. Vale a pena ler e discutir em grupo. Reproduzo aqui o núcleo da carta.


(Apresento) algumas constatações sobre a Igreja atual:
1. A prática religiosa está em constante declive. Um número cada vez mais reduzido de pessoas da terceira idade, que desaparecerão logo, são as que frequentam as igrejas da Europa e do Canadá. Não resta outro remédio senão fechar estas igrejas ou transformá-las em museus, mesquitas, clubes ou bibliotecas municipais, como já se está fazendo. O que me surpreende é que muitas delas estão sendo completamente reformadas e modernizadas mediante grandes gastos com a idéia de atrair os fiéis. Mas não será suficiente para frear o êxodo.
2. Seminários e noviciados se esvaziam no mesmo ritmo, e as vocações caem vertiginosamente. O futuro é sombrio e há quem se pergunte quem irá substituir os sacerdotes. Cada vez mais paróquias europeias estão a cargo de sacerdotes da Ásia ou da África.
3. Muitos padres abandonam o sacerdócio e os poucos que ainda o exercem – cuja idade média ultrapassa muitas vezes a da aposentadoria – têm que se encarregar de muitas paróquias, de modo expeditivo e administrativo. Muitos deles, tanto na Europa como no Terceiro Mundo, vivem em concubinato à vista de seus fiéis, que normalmente os aceitam, e de seu bispo, que não pode aceitá-lo, mas que tem em conta a escassez de sacerdotes.
4. A linguagem da Igreja é obsoleta, anacrônica, chata, repetitiva, moralizante, totalmente desadaptada à nossa época. Não se trata em absoluto de acomodar-se nem de fazer demagogia, pois a mensagem do Evangelho deve ser apresentada em toda a sua crueza e exigência. Seria preciso antes promover essa “nova evangelização”, (..) que não consiste em repetir a antiga, que já não diz mais nada, mas em inovar, inventar uma nova linguagem que expresse a fé de modo apropriado e que tenha significado para o homem de hoje.
5. Isto não poderá ser feito senão mediante uma renovação em profundidade da teologia e da catequese, que deveriam ser repensadas e reformuladas totalmente. Um sacerdote e religioso alemão que encontrei recentemente me dizia que a palavra “mística” não é mencionada uma única vez no Novo Catecismo. Não podia acreditar nisso. Temos de constatar que a nossa fé é muito cerebral, abstrata, dogmática e se dirige muito pouco ao coração e ao corpo.
6. Em consequência, um grande número de cristãos se volta para as religiões da Ásia, as seitas, a nova era, as igrejas evangélicas, o ocultismo, etc. Não é de estranhar. Vão buscar em outros lugares o alimento que não encontram em casa, têm a impressão de que lhes damos pedras como se fossem pão. A fé cristã, que em outro tempo outorgava sentido à vida das pessoas, é para elas hoje um enigma, restos de um passado que acabou.
7. No plano moral e ético, os ditames do Magistério, repetidos à saciedade, sobre o matrimônio, a contracepção, o aborto, a eutanásia, a homossexualidade, o matrimônio dos sacerdotes, as segundas uniões, etc., já não dizem mais nada a ninguém e produzem apenas desleixo e indiferença. Todos estes problemas morais e pastorais merecem algo mais que declarações categóricas. Necessitam de um tratamento pastoral, sociológico, psicológico e humano... em uma linha mais evangélica.
8. A Igreja católica, que foi a grande educadora da Europa durante séculos, parece esquecer que a Europa chegou à sua maturidade. A nossa Europa adulta não quer ser tratada como menor de idade. O estilo paternalista de uma Igreja “Mãe e Mestra” está defasada e já não serve mais. Os cristãos aprenderam a pensar por si mesmos e não estão dispostos a engolir qualquer coisa.
9. Os países mais católicos de antes – a França, “primogênita da Igreja”, ou o Canadá francês ultra-católico – deram uma guinada de 180º e caíram no ateísmo, no anticlericalismo, no agnosticismo, na indiferença. No caso de outros países europeus, o processo está em marcha. Pode-se constatar que quanto mais dominado e protegido pela Igreja esteve um povo no passado, mais forte é a reação contra ela.
10. O diálogo com as outras igrejas e religiões está em preocupante retrocesso hoje. Os grandes progressos realizados há meio século estão sob suspeita neste momento.

Diante desta constatação quase demolidora, a reação da igreja é dupla:
– Tende a minimizar a gravidade da situação e a consolar-se constatando certo dinamismo em sua facção mais tradicional e nos países do Terceiro Mundo.
– Apela para a confiança no Senhor, que a sustentou durante 20 séculos e será capaz de ajudá-la a superar esta nova crise, como o fez nas precedentes. Por acaso, não tem promessas de vida eterna?
A isto respondo:
– Não é apoiando-se no passado nem recolhendo suas migalhas que se resolverão os problemas de hoje e de amanhã. A aparente vitalidade das Igrejas do Terceiro Mundo é equívoca. Segundo parece, estas novas Igrejas, mais cedo ou mais tarde, atravessarão as mesmas crises que a velha cristandade européia conheceu.
– A Modernidade é irreversível, e é por ter esquecido isso que a Igreja já se encontra hoje em semelhante crise. O Vaticano II tentou recuperar quatro séculos de atraso, mas tem-se a impressão de que a Igreja está fechando lentamente as portas que se abriram então, e é tentada a voltar para Trento e o Vaticano I, mais que voltar-se para o Vaticano III (..).
– Até quando continuaremos jogando a política do avestruz e a esconder a cabeça na areia? Até quando evitaremos olhar as coisas de frente? Até quando seguiremos dando as costas, encrespando-nos contra toda crítica, em vez de ver ali uma oportunidade de renovação? Até quando continuaremos postergando uma reforma que se impõe e que foi abandonada durante muito tempo? Somente olhando decididamente para frente e não para trás a Igreja cumprirá sua missão de ser “luz do mundo, sal da terra e fermento na massa”. Entretanto, o que infelizmente constatamos hoje é que a Igreja está no final da fila da nossa época, depois de ter sido a locomotiva durante séculos.
Repito o que dizia no começo desta carta (..). A História não espera, sobretudo em nossa época, em que o ritmo se embala e se acelera. Qualquer organização comercial que constata um déficit ou disfunção se reconsidera imediatamente, reúne especialistas, procura recuperar-se, mobiliza todas as suas energias para superar a crise. Por que a Igreja não faz algo semelhante? Por que não mobiliza todas as suas forças vivas para uma atualização radical? Por quê? Por preguiça, desleixo, orgulho, falta de imaginação, de criatividade, omissão culpável, na esperança de que o Senhor as resolverá e que a Igreja conheceu outras crises no passado?
Então, o que fazer? A Igreja tem hoje uma necessidade imperiosa e urgente de uma tripla reforma:
1. Uma reforma teológica e catequética para repensar a fé e reformulá-la de modo coerente para os nossos contemporâneos. Uma fé que já não significa nada, que não dá sentido à existência, não é mais que um adorno, uma superestrutura inútil que cai por si mesma. É o caso atual.
2. Uma reforma pastoral para repensar de ponta a ponta as estruturas herdadas do passado.
3. Uma reforma espiritual para revitalizar a mística e repensar os sacramentos com vistas a dar-lhes uma dimensão existencial e articulá-los com a vida.
Teria muito a dizer sobre isto. A Igreja de hoje é muito formal, muito formalista. Tem-se a impressão de que a instituição asfixia o carisma. Em última instância, conta é uma estabilidade puramente exterior, uma honestidade superficial, certa fachada. Não corremos o risco de que um dia Jesus nos trate de “sepulcros caiados”?

Para terminar, sugiro a convocação de um Sínodo geral a nível da Igreja universal, do qual participarão todos os cristãos – católicos e outros – para examinar com toda franqueza e clareza os pontos assinalados anteriormente e os que forem propostos. Este Sínodo, que duraria três anos, terminaria com uma Assembléia Geral – evitemos o termo “concílio” – que sintetizasse os resultados desta pesquisa e tirasse daí as conclusões.

Pe. Henri Boulad, SJ