terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Vida Religiosa na Alegria do Evangelho

Ir. Afonso Murad

“Levanta-te e come, levanta-te e come!
Que o caminho é longo, caminho é longo”.

Deus nos surpreende! Por vezes, estamos desanimados, cansados de lutar, e quando menos esperamos, recebemos palavras estimuladoras e gestos de alento. Então, sentimo-nos revigorados, como o profeta Elias. Alimentamo-nos, descansamos e partimos para a missão, renovados, percorrendo o caminho fascinante e sinuoso, ao encontro de Deus (1 Re 19,4-8).

Estimulante surpresa
Homens e mulheres, que há anos se empenhavam para que o Evangelho se encarnasse no ritmo da existência dos povos, que a Igreja fosse mais servidora e flexível, encontraram na Exortação Apostólica “Alegria do Evangelho” (Evangelii Gaudium) um porto seguro e feliz, no qual ancoraram, se reconheceram e ganharam forças.
O documento recolhe as contribuições do Sínodo dos Bispos de 2012 sobre a Nova Evangelização e dá orientações concretas para a Ação Evangelizadora. Papa Francisco não tem a pretensão de proferir uma palavra definitiva ou completa (EG 16), mas sim deseja iluminar e abrir caminhos para a Igreja nos próximos anos (EG 1). Ele acredita na descentralização do poder na Igreja e na participação ativa de bispos, padres, religiosos, leigos e leigas (EG 16).  “Alegria do Evangelho”, fruto de elaboração coletiva com o claro posicionamento de Francisco, visa estimular processos de reflexão, discussão e novas práticas, que compete aos cristãos e às suas comunidades, em diferentes níveis. Propõe algumas diretrizes para encorajar e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora (EG 17), cheia de ardor e dinamismo, com base na Lumen Gentium, do Vaticano II. Eis o forte apelo:
Sejam ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das suas comunidades. Uma identificação dos fins, sem a busca comunitária dos meios para alcança-los, está condenada à mera fantasia. Apliquem, com generosidade e coragem, as orientações deste documento, sem impedimentos nem receios (EV 33).

O discurso de Francisco é coerente com sua postura de Igreja-comunidade. Ele renuncia a tratar detalhadamente de várias questões que devem ser objeto de estudo e aprofundamento, principalmente nas Igrejas locais (EG 16). No correr da Evangelii Gaudium, valoriza e incorpora a contribuição das Conferências Episcopais de várias regiões do mundo. Nas últimas décadas, documentos papais citavam preferentemente outros Papas ou o próprio pontífice. Tal procedimento era acompanhado por certa pressão sobre as Conferências Episcopais e regionais que deveriam, cada vez mais, citar e reproduzir as palavras do Papa e seguir as orientações da cúria romana. Com isso se retirava das Igrejas locais a responsabilidade de interpretar o Evangelho e encarnar a mensagem em diferentes contextos. Elas se tornavam meras repetidoras da autoridade centralizada. A mesma pressão se fez sentir sobre as Conferências de Religiosos/as em várias partes do mundo.

No nosso continente, nas décadas de 1980 e 1990 a CLAR foi acusada, injustamente, de criar um “magistério paralelo”, porque rejeitava a infantilizadora determinação de ser meros repetidora do pensamento romano. Dizia-se que a VR feria a comunhão. Ora, desde quando fornecer critérios de interpretação e sugerir processos comunitários para interpretar a Palavra de Deus fere a comunhão eclesial? Aqueles e aquelas que sofreram dura perseguição nos anos passados, porque levaram a sério a tarefa de renovar a Igreja no espírito do Concílio, encontram nas palavras do Papa Francisco consolo e força: “Valeu a pena lutar. Finalmente somos reconhecidos!”

A exortação de Francisco traz ar fresco e revigorante a toda a Igreja: leigos/as, presbíteros, os consagrados/as, suas comunidades e Institutos. Como os fatos e as palavras rapidamente escapam do nosso horizonte, é preciso voltar aos seus temas essenciais, para que os apelos do Espírito ressoem e encontrem eco nas pessoas, nas comunidades e nas instituições. A teoria da comunicação tem ressaltado que o ciclo comunicativo somente se realiza quando há recepção e expressão dos interlocutores. Não basta que a mensagem seja transmitida. Ela deve ser acolhida, interpretada, vivida, reelaborada e comunicada.

Esse artigo colabora no movimento de recepção da mensagem do Papa Francisco para a Vida Religiosa, em “A alegria do Evangelho”. Ele se soma a outros já escritos ou por escrever. Seleciona alguns textos que parecem mais significativos ao autor, que, a partir daí, tece algumas reflexões e provocações. Concentra-se na introdução geral e na primeira parte da Exortação, que convoca a todos para empreenderem um deslocamento da “Igreja em saída”. Espera-se assim oferecer um material de reflexão e discussão para as pessoas e as comunidades, especialmente por ocasião do “Ano da Vida Consagrada”, proposta também pelo papa Francisco. Desenvolver-se-ão aqui dois pontos: alegria e leveza, e atitudes básicas dos discípulos/as missionários na Igreja “em saída”.

Antes de mais nada, Francisco relembra a todos os cristãos (e também ao religiosos/as, claro) que nossa vida e missão se radica em Jesus. O processo de renovação da Igreja é uma volta a Jesus, ao mesmo tempo voltando-se para o mundo. Eis o tesouro, o segredo simples e belo, expresso de forma breve no início da Gaudium et Spes: as alegrias e tristezas, esperanças e dúvidas da humanidade ressoam no coração dos discípulos de Cristo (GS 1). Ou de forma breve no lema do I Congresso Internacional da Vida Consagrada, em 2004: “paixão por Cristo, paixão pela humanidade”.
Cada vez que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo atual (EG 11).

Alegria e leveza
 Certa vez, em Encontro de Novas Gerações, Luiza, jovem juniorista, desabafou:
“Pra mim, a coisa mais difícil na Vida Religiosa é a tristeza. Na minha comunidade, não temos espaço para rir, dar gargalhadas, falar alto. Tudo é muito sério. Funciona como uma máquina. Sair do horário, nem pensar. Eu chego da Faculdade quase meia noite, e já estou na oração às 5h30 da manhã, para recitar fórmulas. Não sei até quando vou aguentar”.
Quem conhece um pouco as congregações religiosas, sabe que a afirmação dessa jovem consagrada não é exagerada. Faz alguns anos, na Assembleia Geral da CRB (Conferência dos Religiosos/as do Brasil), o tema da Leveza se destacou, a ponto de constituir uma das linhas de ação de Vida Religiosa no triênio. Constatou-se que a rigidez marcava as relações interpessoais e a postura de vida de pessoas, em comunidades e Institutos. O tema da Leveza suscitou interesse, despertou para a reflexão, a partilha e o desenvolvimento de novas atitudes.

Para qualquer pessoa madura, a vida adulta inclui cargas e pesos, dificuldades, responsabilidades e compromissos. Portanto, leveza não é sinônimo de visão ingênua e adolescente, que nega este componente inevitável da vida. De outro lado, todo ser humano equilibrado e feliz tem o seu lado de leveza: gratuidade, fruição, flexibilidade, contentamento. Tanto a nível pessoal, quanto comunitário e institucional, a Vida Religiosa talvez tenha cultivado demais “um lado da balança”. O resultado é visível: pessoas pesadas e pessimistas. Instituições aferradas no passado, com medo de avançar e sair de sua “zona de conforto”.

Abordar o tema da leveza na Vida Religiosa é importante para ajudar a perceber aquilo que nos engessa. E responder com alegria, disponibilidade e agilidade aos apelos de Deus nos dias de hoje! A exortação do Papa Francisco atualiza o tema da “Leveza e agilidade”, que para ele se expressam principalmente como “alegria, conversão pastoral e saída”.
Francisco aponta também outra causa da tristeza, que já não é mais a do excesso de trabalho e de certa rigidez, que caracterizava as gerações antigas. Desta vez, provém da tendência egocêntrica e individualista da cultura moderna.

O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem (EG 2)

A alegria não se traduz necessariamente em rir sempre e gozar de um constante estado de espírito marcado pela euforia. Nos momentos duros, difíceis, todo ser humano tem o direito de se entristecer. Diante de perdas extremas, com a morte, é necessário o tempo de luto. Mas isso é diferente daquele(a) que vive em constante tristeza, “em estado de quaresma sem páscoa”, como diz Francisco.
A alegria não se vive da mesma maneira em todas as etapas e circunstâncias da vida, por vezes muito duras. Adapta-se e transforma-se, mas sempre permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados. Compreendo as pessoas que se vergam à tristeza por causa das graves dificuldades que têm de suportar, mas aos poucos é preciso permitir que a alegria da fé comece a despertar, como uma secreta mas firme confiança, mesmo no meio das piores angústias (EG 6).

Cada um/a de nós é chamado/a  a cultivar esta atitude de alegria e leveza, que nos fazem felizes, “de bem com a vida”.  E assim transparecemos a alegria de Deus, que nos ama incondicionalmente. O cultivo da leveza, da alegria e da itinerância, nos liberta para a ousadia do Reino. Existem estreitos laços entre espiritualidade, alegria e missão.
Do ponto de vista teológico e pastoral, Francisco nos fornece duas importantes chaves de leitura: “A alegria do Evangelho é missionária” e “a intimidade com Jesus, itinerante”. Com isso, supera-se uma visão intimista e meramente subjetiva da fé e da experiência religiosa. Nos evangelhos se relata que os 72 discípulos voltam da missão que o Senhor lhes confiou, cheios de alegria (cf. Lc 10, 17). O próprio Jesus exulta de alegria no Espírito Santo e louva o Pai, porque a sua revelação chega aos pobres e aos pequeninos (cf. Lc 10, 21). Também acontece assim com os primeiros que se convertem no Pentecostes, ao ouvir “cada um na sua própria língua” (At 2, 6) a pregação dos Apóstolos. Esta alegria é sinal de que o Evangelho foi anunciado e está frutificando (EG 21).

A intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão é missionária. Fiel ao Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo, não se pode excluir ninguém (EG 23)

Talvez um dos grandes entraves na Vida Religiosa consista em não colocar em prática, já na formação inicial, estes dois princípios, da alegria missionária e da intimidade (com Jesus) itinerante. É certo que nessa etapa se faz necessário cultivar o autoconhecimento, o acompanhamento pessoal, o espírito de família, a internalização das atitudes, os compromissos comunitários, a limpeza e conservação da casa, a espiritualidade, os momentos de oração e o estudo. Mas é notório que padecemos de um desequilíbrio. Especialmente nos institutos masculinos. Certa vez, num curso para formadores, perguntou-se como se organizava a típica semana dos postulantes. Frei Carlos respondeu:
“Durante a semana, de manhã eles estudam filosofia na Faculdade. De tarde, limpam a casa e fazem esporte. Algumas vezes na semana, temos aulas de formação sobre a doutrina cristã, o fundador e a congregação. De noite, é tempo pessoal. E no final de semana, nos sábado à tarde e no domingo de manhã, um pouco de pastoral. Afinal, temos que evitar os exageros!”.


 A ilusão das equipes de Formação (e dos/as provinciais) consiste em crer que se forma para a missão deixando os jovens praticamente todo o tempo em casa, com atividades internas. Ora, reflexões pedagógicas atuais sustentam que aprendizagens significativas se constituem a partir de experiências, vividas intensamente, refletidas e explicitadas. A teoria serve para explicar, organizar, compreender, relacionar, conceituar, aperfeiçoar. Já na formação inicial os jovens (e seus/suas formadores) necessitam experimentar a alegria missionária e a intimidade itinerante com Jesus. Caso contrário, buscarão sua alegria em outros lugares. Em vez da fonte de água viva, se refugiarão em cisternas rachadas que não retém a água! (Jer 2,13; Jo 7,37-38)

1ª parte do artigo Alegria itinerante de discípulos/as missionários/as. 
Atitudes da Vida Religiosa “em saída” publicado na Revista "Convergência", novembro de 2014. Veja a continuação na postagem anterior. 

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

As atitudes do discípulo/a missionário/a na Vida Religiosa

A 5ª Conferência do Episcopado latino-americano e caribenho, em Aparecida, gestou um iluminador documento final. Junto com os bispos estiveram presentes representantes da Vida Religiosa, de movimentos e pastorais, de leigos e de presbíteros. Embora num momento pouco propício a mudanças, o documento de Aparecida significou um avanço para a prática pastoral da Igreja. A expressão “discípulos e missionários” foi assumida em perspectiva dinâmica e interdependente (DAp 10, 11,14,23,31..). Cada seguidor(a) de Jesus, como também a comunidade eclesial, vive em permanente movimento de aprender (com o mestre, com os outros e  com a realidade), de testemunhar e de ensinar.

Esta bandeira do discipulado e da missão já estava presente, desde os inícios, nas práticas da chamada “Igreja dos pobres”, da Teologia da Libertação, e na Vida Religiosa, sobretudo com as comunidades inseridas. Inspirada no Evangelho e se apoiando na pedagogia libertadora de Paulo Freire, construiu-se no continente uma metodologia evangelizadora que busca estabelecer relações fraternas e sororais. Uma Igreja-comunidade, a serviço da Boa-Nova e da mudança da sociedade. Papa Francisco, que na ocasião da Conferência de Aparecida presidia a comissão de redação, universalizou a expressão “discípulos missionários” na sua Exortação Apostólica “Alegria do Evangelho” (EG 120, 173). Tornou-a um patrimônio de toda a Igreja.

A Igreja em saída é a comunidade de discípulos-missionários que apresenta cinco atitudes básicas: tomar a iniciativa (aprimeirar-se, ir na frente), Envolver-se, Acompanhar, Frutificar e Festejar (EG 24). Vejamos o que caracteriza cada uma destas atitudes e o que elas tem a dizer especialmente para os Religiosos/as.

Ir na frente (aprimeirar-se)
A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (1 Jo 4, 10). Por isso, ela vai à frente, vem ao encontro, procura os afastados e chega às encruzilhadas dos caminhos para convidar os que estão à margem (EG 24).
Basta percorrer a história dos 17 séculos da Vida Consagrada para perceber com esta postura de sair na frente, romper fronteira, abrir caminhos, faz parte de sua história. Monges evangelizaram povos considerados “bárbaros”. Consagrados iniciaram processos de evangelização na Ásia, na África, nas Américas e na Oceania. Foram pioneiros na missão “Ad Gentes”. Promoveram iniciativas inovadoras de diálogo com a cultura letrada e popular. Abriram escolas e instituições de Ensino Superior. Criaram espaços e instituições para acolher órfãos, jovens em situação de risco e idosos abandonados. Aprimeiram-se na evangelização dos povos indígenas. Promoveram o diálogo intercultural em vista da evangelização. Atuaram junto à população migrante. Abriram hospitais. Acolheram mulheres em situação de prostituição. Assumiram a evangelização na mídia escrita e o rádio.

Tudo isso faz parte do “passado glorioso” da Vida Religiosa. Não somente. Nos últimos 50 anos, as comunidades religiosas também saíram na frente em várias iniciativas pastorais e sociais. Foram para as periferias. Formaram lideranças leigas nas CEBs, nas pastorais sociais, na catequese e na Pastoral de Juventude. Investiram no protagonismo dos leigos e dos pobres. Promoveram iniciativas intercongregacionais, como os Institutos de Pastoral de Juventude. Participaram no movimento popular em defesa da terra, na roça e na cidade. Difundiram as causas étnicas, sociais e ambientais. Promoveram a educação libertadora em suas escolas, enfrentando duras resistências. Ajudaram na renovação da Igreja, atuando na animação paroquial, e como agentes e coordenadores(as) de pastoral em vários âmbitos.

Nos últimos anos, parece que este vigor de “ir na frente” se arrefeceu, devido a várias causas, internas e externas. O envelhecimento e a falta de novas vocações provocou um movimento de “voltar-se para dentro”. Fecharam-se as iniciativas mais ousadas nas periferias, e concentrou-se o pessoal na gestão das obras tradicionais (escolas, hospitais, paróquias), além da animação e governo da própria instituição. Congregações de Irmãos e Irmãs que trabalhavam na pastoral de comunidades populares, paróquias e dioceses, tiveram seu espaço de atuação drasticamente reduzido, com o crescimento do clericalismo, concentração do poder na mão do padre, movimentos de leigos, grupos pentecostais católicos e novas comunidades. Um grupo significativo de “meia idade” assumiu o poder nas congregações, trazendo consigo alguns traços da modernidade burguesa: vida cômoda, padrão de vida elevado, consumo, visibilidade midiática... O resultado é desconcertante. Enquanto as novas comunidades saem na frente, apesar de opção eclesiológica questionável e outros tantos problemas; vários Institutos religiosos voltam para trás, em busca de segurança.

De outro lado, algumas minorias na Vida Religiosa continuaram a “aprimeirar-se” no serviço evangelizador, na promoção social e na libertação dos pobres. Por vezes, sem receber sequer o apoio e o reconhecimento de seus coirmãos e coirmãs. Podemos citar, entre outros: a pastoral com drogados e tóxico-dependentes, as redes contra o tráfico humano, os grupos de apoio aos migrantes, as iniciativas com jovens em situação de vulnerabilidade social, a missão ad gentes em regiões pobres e abandonadas, no país e no exterior, os diversos empreendimentos de voluntariado, a implantação e implementação de projetos sócio-ambientais. Tais atitudes e práticas, de grande generosidade e ousadia, necessitam ser acolhidas, reconhecidas e promovidas pelos institutos. Isso se faz envolvendo cada vez as novas gerações de consagrados/as, e os leigos e leigas que compartilham nossa espiritualidade e missão. Talvez seja este o grande apelo de Deus no momento, que Francisco acolheu e proclamou com tanto vigor. A “Igreja em saída” só se realiza quando pessoas, comunidades e instituições rompem o estabelecido, arriscam, se lançam.

Envolver-se
Com obras e gestos, os evangelizadores entram na vida diária dos outros, encurtam as distâncias, abaixam-se e assumem a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Contraem assim o “cheiro das ovelhas”, e estas escutam a sua voz (EG 24).

Durante vários séculos, até o Concílio Vaticano II, a Vida Religiosa foi compreendida principalmente como um “estado de perfeição”. O ideal da santidade estava delineado com um claro distanciamento em relação ao mundo, entendido em sentido negativo, quase como sinônimo de “mundano”. Neste caso, o religioso(a) devia se envolver o mínimo possível com as pessoas, especialmente com as de outro sexo. É certo que toda opção de vida implica renunciar a certos tipos de convivência e resguardar-se para não se desviar. Mas o pêndulo deslocou-se demais para o lado do isolamento. Ele trouxe consigo a auto-suficiência, um orgulho disfarçado, o sentimento de que éramos melhores e mais perfeitos do que os leigos/as. O mesmo se deu no ministério ordenado. Apesar dessa separação, muitos consagrados(as) se notabilizaram pela proximidade junto aos fragilizados de todo tipo, como órfãos, leprosos, miseráveis, doentes, deficientes mentais, anciãos abandonados. Eles e elas “tocaram a carne sofredora de Cristo no povo”. Contraíram o cheiro da ovelhas.

A grande virada da “Igreja dos pobres” na América Latina consistiu na descoberta de que os empobrecidos eram pessoas com sabedoria, capazes de serem protagonistas de um processo de libertação comunitário e estrutural. A presença de religiosas/as junto dos pobres, a começar pelo deslocamento do local de moradia, enriqueceu enormemente a espiritualidade e trouxe perguntas novas. Aprender do povo, estar ao lado dele, ser um sinal de esperança. A Vida Religiosa fez-se aprendiz, discípula.

Certa vez, uma congregação de Irmãos educadores decidiu abriu uma comunidade na região do semiárido. Os religiosos não teriam escolas, nem obras. O provincial buscou o Irmão João, que durante toda a vida havia atuado somente como professor em colégios, e na formação inicial. Ao receber o convite, o Irmão se assustou: “O que vou fazer lá?”. Anos depois, ele testemunhou o significado da experiência junto do povo:
Eu descobri que o mundo é maior do que o muro da escola. Cada dia aprendo com o povo: sua religiosidade, a alegria, o desprendimento, os gestos de solidariedade.  Aprendi a entrar nas casas, sentar no banquinho da cozinha, tomar café, escutar as pessoas, ouvir os “causos”, dar conselhos. Eu me achava tão piedoso (risos). Mas o povo reza mais do que eu, tem uma fé mais intensa. Ah! Como é bom.

A crise atual da Vida Religiosa e as exigência de eficácia da sociedade moderna tem “empurrado” várias congregações a destinar boa parte de seu pessoal para tarefas de gestão das obras. Se é fruto de discernimento bem realizado, tal opção se mostra legítima. Mas carrega um grave risco, que toca o coração do discípulo/a missionário/a. À medida que adentram em cargos executivos, especialmente em instituições ricas e famosas, os consagrados se tornam fundamentalmente gestores. E, naturalmente, em ambientes marcados pela lógica trabalhista, o gestor/a necessita manter certa distância formal, profissional, em relação aos seus colaboradores. Com o passar do tempo, ele/a esquece o mundo dos pobres, dos sofredores, dos últimos. Longe dos olhos, longe do coração! Ou como se diz na Teologia da Libertação: “o lugar social condiciona o lugar hermenêutico”. Talvez o rodízio dos cargos de poder e a imersão em tempos intensos junto dos pobres possa minimizar este problema.

Acompanhar
A comunidade evangelizadora acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam. Conhece e suporta as longas esperas. A evangelização exige muita paciência, e evita deter-se nas limitações (EG 24).

“Acompanhamento” tornou-se uma palavra usual na Vida Religiosa. Nos planos de Pastoral Vocacional e Formação Inicial insiste-se que o acompanhamento é tarefa básica e irrenunciável. Conjugam-se, cada vez mais, elementos psicológicos e existenciais com a caminhada de fé, para acompanhar as pessoas. Pede-se que o(a) provincial ou coordenador(a) geral acompanhe seus irmãos e irmãs, através de visitas, entrevistas e outros procedimentos. Ao coordenador/a da comunidade também compete esta tarefa, embora no âmbito mais operacional. Quem exerce o múnus do acompanhamento, sabe bem como alguns processos de crescimento são “duros e demorados” e o que significa “conhecer e suportar as longas esperas”, de que fala o Papa Francisco. Mais ainda. Para acompanhar com eficácia, por vezes não basta a versão pessoal do acompanhado. Ele/a pode, durante anos, mascarar suas atitudes e não demonstrar as reais motivações que o movem.

Há também o acompanhamento de processos pastorais, educativos e institucionais. Eles exigem, cada vez mais, competência na sua área de atuação, conhecimento teórico e prático, visão estratégica  e informações necessárias para tomada de decisões. Sem falar de uma equipe de pessoas com habilidades diferentes e complementares. Acompanhamento de processos implica muitas coisas, como planejar bem, distribuir tarefas, realizar atividades, monitorar quem executa, avaliar e reprogramar.

Os dois extremos do acompanhamento deficiente residem na postura autoritária que sufoca a iniciativa do grupo de trabalho, ou na falta de controle, que deixa cada um fazer o que quer. Um leigo/a ou religioso/a que assumem funções de gestão e liderança aprendem a acompanhar, com acertos e erros. Descobrem a medida adequada para monitorar, a fim de que as pessoas não se dispersem, percam o foco e ou se limitem a repetir o que sempre fizeram. Ao acompanhar, o/a líder estimula, apóia, sugere, ensina, aprende, espera e se for o caso, corrige.

No entanto, Papa Francisco vai mais longe na sua reflexão. Ele se refere a “uma comunidade”, que é mais do que um indivíduo. Trata-se de um grupo de pessoas, reunidas a partir do chamado de Jesus, que atuam de forma conjunta, superando os modelos piramidais e fortemente hierarquizados.
Essa comunidade acompanha não somente seus membros e os processos internos, e sim a humanidade. Parece algo tão longínquo e abstrato! Mas quem se engaja em grandes causas da humanidade, compreende bem o que é isso. O horizonte de esperança e de preocupações supera as fronteiras de sua instituição e da Igreja. Como se diz no movimento ambiental, a gente atua em nível local, mas com a consciência global. A realidade não é compreendida a partir de estatísticas, de números frios. Sentimo-nos conectados com uma ciranda quase infinita de homens e mulheres que formam a corrente do Bem. Seguimos atentos. Celebramos as vitórias, sofremos com eles/as os revezes. Oramos por pessoas, grupos e organizações. Efetivamente fazemos parte de múltiplas redes que tecem esperanças e projetos humanizadores (EG 87).

Frutificar e festejar
O missionário/a mantém-se atento aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e não perde a paz por causa do joio. Encontra o modo para que a Palavra se encarne na situação concreta e dê frutos de vida nova, apesar de imperfeitos (EG 24).

O Evangelho valoriza os resultados, não somente as intenções. Na parábola dos diferentes tipos de solo que acolhem a palavra de Jesus, dá-se importância à terra boa, na qual a semente brota e dá fruto, em grande proporção, de cem por um (Lc 8,8). E na explicação da parábola, se diz: “o que caiu em terra boa são aqueles que, ouvindo de coração bom e generoso, guardam a palavra e dão fruto na perseverança (Lc 8,15)”. Para que os resultados apareçam, é necessário muito trabalho, paciência e perseverança. Mais. Na visão de Francisco, são “frutos de vida nova, apesar de imperfeitos”, que resultam de um processo de encarnação, de “estar com” as pessoas e os grupos, e não “sobre elas”.

Vivemos numa sociedade que valoriza os resultados e abomina a ineficácia. Por isso, as organizações estabelecem planos estratégicos, após uma acurada leitura de cenário interno e externo. Elaboram-se objetivos, metas e indicadores. Tudo isso é bom, se imbuído de um direcionamento humanizador. Os mecanismos de eficácia são uma arma poderosa, que serve a quem a tem na mão. Como qualquer realidade humana, carrega consigo a ambiguidade. Seu limite reside na tendência de transformar os meios em fins próprios. Dito de maneira simples: busca-se o sucesso pelo sucesso, a conquista de crescente por espaços de poder porque isso incha os egos e fortalece o orgulho e autossuficiência institucional (EG 80). O imediatismo e a superficialidade leva a uma intolerância diante das contradições, do aparente fracasso, das críticas, da cruz (EG 82).

Os/as religiosos/as, suas comunidades e organizações estão aprendendo a superar o amadorismo, a visão ingênua e simplista, e começam a adotar mecanismos para aumentar os resultados positivos de seus empreendimentos pastorais, sociais, educativos e profissionais. Devem fazer isso sempre com reserva profética. Propor alternativas iluminadoras para a humanidade significa, muitas vezes, pagar o preço da incompreensão, da perseguição e até de alguns fracassos. Assim aconteceu com Jesus, e assim também sucede com seus discípulos-missionários. A lógica evangélica dos frutos comporta resultados positivos, mas não se confunde com o sucesso a qualquer custo. Especialmente se esse está contaminado pela vaidade e a auto-suficiência.

Por fim, Francisco completa a lista das atitudes básicas da comunidade de discípulos missionários com o festejar.
Os evangelizadores, cheios de alegria, sabem sempre festejar: celebram cada pequena vitória, cada passo dado. E se alimentam da liturgia (EG 24).
Saber festejar é uma característica de quem tem coração de criança. A pessoa encanta-se com os pequenos passos dados, ri das coisas simples da vida. Não se deixa levar pelo pessimismo. E aquela alegria, que caracteriza os seguidores de Jesus, tem momentos de auge, de expressão pessoal e comunitária. É a festa, a celebração das conquistas. Nela, extravasa-se o contentamento.

Certa vez,  um time de futebol conquistou o campeonato nacional, após mais de 20 anos longe do título. A torcida, especialmente o setor mais pobres, fez uma grande festa. Multidões sairam às ruas, cantando e dançando, soltando fogos de artifício, com camisas e bandeiras. Alegria desmesurada da festa. Neste clima, um programa de TV entrevistou o técnico: “O que você está sentindo com esta vitória, após tantos anos de luta?” Ele respondeu, com um tom sério: “Vamos continuar trabalhando para conquistar o título também no próximo ano”. Ao contrário da torcida, este homem não sabia festejar. Em vez de se alegrar com o presente, já estava pensando ansiosamente no futuro. Em qual dos personagens nos vemos mais? A torcida alegre ou o técnico carrancudo?

Conclusão aberta: uma oração
Nós te damos Graças, Jesus,
Pois tu nos chamas para estarmos contigo,
na alegria missionária e na intimidade itinerante.

Contigo despertamos a cada dia,
pedindo que abras nossos lábios para proclamar teu louvor.
Por ti dedicamos o trabalho cotidiano,
desde fazer o simples café da manhã
até as importantes tarefas a realizar.

Mantém nosso coração alegre e vibrante.
Queremos sair na frente, aprimeirar.
Dá-nos ousadia, desprendimento e coragem.
Para nos envolvermos com as pessoas e os processos,
Acompanhar, frutificar e festejar.

Com a alegria da tua presença
A leveza da tua companhia
A força redentora da tua morte
A energia renovadora da tua ressurreição
Seguiremos o caminho luminoso do Reino.

Amém!

(Parte final de artigo publicado na Revista Convergência - Novembro 2014)