A 5ª Conferência do Episcopado latino-americano
e caribenho, em Aparecida, gestou um iluminador documento final. Junto com os
bispos estiveram presentes representantes da Vida Religiosa, de movimentos e
pastorais, de leigos e de presbíteros. Embora num momento pouco propício a
mudanças, o documento de Aparecida significou um avanço para a prática pastoral
da Igreja. A expressão “discípulos e missionários” foi assumida em perspectiva
dinâmica e interdependente (DAp 10, 11,14,23,31..). Cada seguidor(a) de Jesus,
como também a comunidade eclesial, vive em permanente movimento de aprender
(com o mestre, com os outros e com a
realidade), de testemunhar e de ensinar.
Esta bandeira do discipulado e da
missão já estava presente, desde os inícios, nas práticas da chamada “Igreja
dos pobres”, da Teologia da Libertação, e na Vida Religiosa, sobretudo com as comunidades
inseridas. Inspirada no Evangelho e se apoiando na pedagogia libertadora de
Paulo Freire, construiu-se no continente uma metodologia evangelizadora que
busca estabelecer relações fraternas e sororais. Uma Igreja-comunidade, a
serviço da Boa-Nova e da mudança da sociedade. Papa Francisco, que na ocasião
da Conferência de Aparecida presidia a comissão de redação, universalizou a
expressão “discípulos missionários” na sua Exortação Apostólica “Alegria do
Evangelho” (EG 120, 173). Tornou-a um patrimônio de toda a Igreja.
A Igreja em saída é a comunidade de
discípulos-missionários que apresenta cinco atitudes básicas: tomar a
iniciativa (aprimeirar-se, ir na frente), Envolver-se, Acompanhar, Frutificar e
Festejar (EG 24). Vejamos o que caracteriza cada uma destas atitudes e o que
elas tem a dizer especialmente para os Religiosos/as.
Ir
na frente (aprimeirar-se)
A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa,
precedeu-a no amor (1 Jo 4, 10). Por isso, ela vai à frente, vem ao encontro,
procura os afastados e chega às encruzilhadas dos caminhos para convidar os que
estão à margem (EG 24).
Basta percorrer a história dos 17
séculos da Vida Consagrada para perceber com esta postura de sair na frente,
romper fronteira, abrir caminhos, faz parte de sua história. Monges
evangelizaram povos considerados “bárbaros”. Consagrados iniciaram processos de
evangelização na Ásia, na África, nas Américas e na Oceania. Foram pioneiros na
missão “Ad Gentes”. Promoveram iniciativas inovadoras de diálogo com a cultura
letrada e popular. Abriram escolas e instituições de Ensino Superior. Criaram
espaços e instituições para acolher órfãos, jovens em situação de risco e
idosos abandonados. Aprimeiram-se na evangelização dos povos indígenas. Promoveram
o diálogo intercultural em vista da evangelização. Atuaram junto à população
migrante. Abriram hospitais. Acolheram mulheres em situação de prostituição.
Assumiram a evangelização na mídia escrita e o rádio.
Tudo isso faz parte do “passado
glorioso” da Vida Religiosa. Não somente. Nos últimos 50 anos, as comunidades
religiosas também saíram na frente em várias iniciativas pastorais e sociais.
Foram para as periferias. Formaram lideranças leigas nas CEBs, nas pastorais
sociais, na catequese e na Pastoral de Juventude. Investiram no protagonismo
dos leigos e dos pobres. Promoveram iniciativas intercongregacionais, como os
Institutos de Pastoral de Juventude. Participaram no movimento popular em
defesa da terra, na roça e na cidade. Difundiram as causas étnicas, sociais e
ambientais. Promoveram a educação libertadora em suas escolas, enfrentando
duras resistências. Ajudaram na renovação da Igreja, atuando na animação
paroquial, e como agentes e coordenadores(as) de pastoral em vários âmbitos.
Nos últimos anos, parece que este
vigor de “ir na frente” se arrefeceu, devido a várias causas, internas e
externas. O envelhecimento e a falta de novas vocações provocou um movimento de
“voltar-se para dentro”. Fecharam-se as iniciativas mais ousadas nas
periferias, e concentrou-se o pessoal na gestão das obras tradicionais (escolas,
hospitais, paróquias), além da animação e governo da própria instituição.
Congregações de Irmãos e Irmãs que trabalhavam na pastoral de comunidades
populares, paróquias e dioceses, tiveram seu espaço de atuação drasticamente
reduzido, com o crescimento do clericalismo, concentração do poder na mão do
padre, movimentos de leigos, grupos pentecostais católicos e novas comunidades.
Um grupo significativo de “meia idade” assumiu o poder nas congregações,
trazendo consigo alguns traços da modernidade burguesa: vida cômoda, padrão de
vida elevado, consumo, visibilidade midiática... O resultado é desconcertante.
Enquanto as novas comunidades saem na
frente, apesar de opção eclesiológica questionável e outros tantos
problemas; vários Institutos religiosos voltam
para trás, em busca de segurança.
De outro lado, algumas minorias na
Vida Religiosa continuaram a “aprimeirar-se” no serviço evangelizador, na promoção
social e na libertação dos pobres. Por vezes, sem receber sequer o apoio e o
reconhecimento de seus coirmãos e coirmãs. Podemos citar, entre outros: a
pastoral com drogados e tóxico-dependentes, as redes contra o tráfico humano,
os grupos de apoio aos migrantes, as iniciativas com jovens em situação de
vulnerabilidade social, a missão ad gentes em regiões pobres e abandonadas, no
país e no exterior, os diversos empreendimentos de voluntariado, a implantação
e implementação de projetos sócio-ambientais. Tais atitudes e práticas, de
grande generosidade e ousadia, necessitam ser acolhidas, reconhecidas e
promovidas pelos institutos. Isso se faz envolvendo cada vez as novas gerações de
consagrados/as, e os leigos e leigas que compartilham nossa espiritualidade e missão.
Talvez seja este o grande apelo de Deus no momento, que Francisco acolheu e
proclamou com tanto vigor. A “Igreja em saída” só se realiza quando pessoas,
comunidades e instituições rompem o estabelecido, arriscam, se lançam.
Envolver-se
Com obras e gestos, os evangelizadores entram na vida diária dos
outros, encurtam as distâncias, abaixam-se e assumem a vida humana, tocando a
carne sofredora de Cristo no povo. Contraem assim o “cheiro das ovelhas”, e
estas escutam a sua voz (EG 24).
Durante vários séculos, até o
Concílio Vaticano II, a Vida Religiosa foi compreendida principalmente como um
“estado de perfeição”. O ideal da santidade estava delineado com um claro distanciamento
em relação ao mundo, entendido em sentido negativo, quase como sinônimo de
“mundano”. Neste caso, o religioso(a) devia se envolver o mínimo possível com
as pessoas, especialmente com as de outro sexo. É certo que toda opção de vida
implica renunciar a certos tipos de convivência e resguardar-se para não se
desviar. Mas o pêndulo deslocou-se demais para o lado do isolamento. Ele trouxe
consigo a auto-suficiência, um orgulho disfarçado, o sentimento de que éramos
melhores e mais perfeitos do que os leigos/as. O mesmo se deu no ministério
ordenado. Apesar dessa separação, muitos consagrados(as) se notabilizaram pela
proximidade junto aos fragilizados de todo tipo, como órfãos, leprosos,
miseráveis, doentes, deficientes mentais, anciãos abandonados. Eles e elas
“tocaram a carne sofredora de Cristo no povo”. Contraíram o cheiro da ovelhas.
A grande virada da “Igreja dos
pobres” na América Latina consistiu na descoberta de que os empobrecidos eram
pessoas com sabedoria, capazes de serem protagonistas de um processo de
libertação comunitário e estrutural. A presença de religiosas/as junto dos
pobres, a começar pelo deslocamento do local de moradia, enriqueceu enormemente
a espiritualidade e trouxe perguntas novas. Aprender do povo, estar ao lado
dele, ser um sinal de esperança. A Vida Religiosa fez-se aprendiz, discípula.
Certa vez, uma congregação de Irmãos
educadores decidiu abriu uma comunidade na região do semiárido. Os religiosos
não teriam escolas, nem obras. O provincial buscou o Irmão João, que durante
toda a vida havia atuado somente como professor em colégios, e na formação
inicial. Ao receber o convite, o Irmão se assustou: “O que vou fazer lá?”. Anos
depois, ele testemunhou o significado da experiência junto do povo:
Eu descobri que o mundo é maior do que o muro da escola. Cada dia
aprendo com o povo: sua religiosidade, a alegria, o desprendimento, os gestos
de solidariedade. Aprendi a entrar nas
casas, sentar no banquinho da cozinha, tomar café, escutar as pessoas, ouvir os
“causos”, dar conselhos. Eu me achava tão piedoso (risos). Mas o povo reza mais
do que eu, tem uma fé mais intensa. Ah! Como é bom.
A crise atual da Vida Religiosa e as
exigência de eficácia da sociedade moderna tem “empurrado” várias congregações
a destinar boa parte de seu pessoal para tarefas de gestão das obras. Se é
fruto de discernimento bem realizado, tal opção se mostra legítima. Mas carrega
um grave risco, que toca o coração do discípulo/a missionário/a. À medida que adentram
em cargos executivos, especialmente em instituições ricas e famosas, os
consagrados se tornam fundamentalmente gestores. E, naturalmente, em ambientes
marcados pela lógica trabalhista, o gestor/a necessita manter certa distância
formal, profissional, em relação aos seus colaboradores. Com o passar do tempo,
ele/a esquece o mundo dos pobres, dos sofredores, dos últimos. Longe dos olhos,
longe do coração! Ou como se diz na Teologia da Libertação: “o lugar social
condiciona o lugar hermenêutico”. Talvez o rodízio dos cargos de poder e a
imersão em tempos intensos junto dos pobres possa minimizar este problema.
Acompanhar
A comunidade evangelizadora acompanha a humanidade em todos os seus
processos, por mais duros e demorados que sejam. Conhece e suporta as longas
esperas. A evangelização exige muita paciência, e evita deter-se nas limitações
(EG 24).
“Acompanhamento” tornou-se uma
palavra usual na Vida Religiosa. Nos planos de Pastoral Vocacional e Formação
Inicial insiste-se que o acompanhamento é tarefa básica e irrenunciável.
Conjugam-se, cada vez mais, elementos psicológicos e existenciais com a
caminhada de fé, para acompanhar as pessoas. Pede-se que o(a) provincial ou
coordenador(a) geral acompanhe seus irmãos e irmãs, através de visitas,
entrevistas e outros procedimentos. Ao coordenador/a da comunidade também
compete esta tarefa, embora no âmbito mais operacional. Quem exerce o múnus do
acompanhamento, sabe bem como alguns processos de crescimento são “duros e
demorados” e o que significa “conhecer e suportar as longas esperas”, de que
fala o Papa Francisco. Mais ainda. Para acompanhar com eficácia, por vezes não
basta a versão pessoal do acompanhado. Ele/a pode, durante anos, mascarar suas
atitudes e não demonstrar as reais motivações que o movem.
Há também o acompanhamento de
processos pastorais, educativos e institucionais. Eles exigem, cada vez mais,
competência na sua área de atuação, conhecimento teórico e prático, visão
estratégica e informações necessárias
para tomada de decisões. Sem falar de uma equipe de pessoas com habilidades
diferentes e complementares. Acompanhamento de processos implica muitas coisas,
como planejar bem, distribuir tarefas, realizar atividades, monitorar quem
executa, avaliar e reprogramar.
Os dois extremos do acompanhamento deficiente
residem na postura autoritária que sufoca a iniciativa do grupo de trabalho, ou
na falta de controle, que deixa cada um fazer o que quer. Um leigo/a ou
religioso/a que assumem funções de gestão e liderança aprendem a acompanhar,
com acertos e erros. Descobrem a medida adequada para monitorar, a fim de que
as pessoas não se dispersem, percam o foco e ou se limitem a repetir o que sempre
fizeram. Ao acompanhar, o/a líder estimula, apóia, sugere, ensina, aprende,
espera e se for o caso, corrige.
No entanto, Papa Francisco vai mais
longe na sua reflexão. Ele se refere a “uma comunidade”, que é mais do que um
indivíduo. Trata-se de um grupo de pessoas, reunidas a partir do chamado de
Jesus, que atuam de forma conjunta, superando os modelos piramidais e
fortemente hierarquizados.
Essa comunidade acompanha não
somente seus membros e os processos internos, e sim a humanidade. Parece algo
tão longínquo e abstrato! Mas quem se engaja em grandes causas da humanidade,
compreende bem o que é isso. O horizonte de esperança e de preocupações supera
as fronteiras de sua instituição e da Igreja. Como se diz no movimento
ambiental, a gente atua em nível local, mas com a consciência global. A
realidade não é compreendida a partir de estatísticas, de números frios. Sentimo-nos
conectados com uma ciranda quase infinita de homens e mulheres que formam a
corrente do Bem. Seguimos atentos. Celebramos as vitórias, sofremos com eles/as
os revezes. Oramos por pessoas, grupos e organizações. Efetivamente fazemos
parte de múltiplas redes que tecem esperanças e projetos humanizadores (EG 87).
Frutificar
e festejar
O missionário/a mantém-se atento aos frutos, porque o Senhor a quer
fecunda. Cuida do trigo e não perde a paz por causa do joio. Encontra o modo
para que a Palavra se encarne na situação concreta e dê frutos de vida nova,
apesar de imperfeitos (EG 24).
O Evangelho valoriza os resultados,
não somente as intenções. Na parábola dos diferentes tipos de solo que acolhem
a palavra de Jesus, dá-se importância à terra boa, na qual a semente brota e dá
fruto, em grande proporção, de cem por um (Lc 8,8). E na explicação da
parábola, se diz: “o que caiu em terra boa são aqueles que, ouvindo de coração
bom e generoso, guardam a palavra e dão fruto na perseverança (Lc 8,15)”. Para
que os resultados apareçam, é necessário muito trabalho, paciência e
perseverança. Mais. Na visão de Francisco, são “frutos de vida nova, apesar de
imperfeitos”, que resultam de um processo de encarnação, de “estar com” as
pessoas e os grupos, e não “sobre elas”.
Vivemos numa sociedade que valoriza
os resultados e abomina a ineficácia. Por isso, as organizações estabelecem
planos estratégicos, após uma acurada leitura de cenário interno e externo. Elaboram-se
objetivos, metas e indicadores. Tudo isso é bom, se imbuído de um
direcionamento humanizador. Os mecanismos de eficácia são uma arma poderosa,
que serve a quem a tem na mão. Como qualquer realidade humana, carrega consigo
a ambiguidade. Seu limite reside na tendência de transformar os meios em fins
próprios. Dito de maneira simples: busca-se o sucesso pelo sucesso, a conquista
de crescente por espaços de poder porque isso incha os egos e fortalece o
orgulho e autossuficiência institucional (EG 80). O imediatismo e a
superficialidade leva a uma intolerância diante das contradições, do aparente
fracasso, das críticas, da cruz (EG 82).
Os/as religiosos/as, suas
comunidades e organizações estão aprendendo a superar o amadorismo, a visão
ingênua e simplista, e começam a adotar mecanismos para aumentar os resultados
positivos de seus empreendimentos pastorais, sociais, educativos e
profissionais. Devem fazer isso sempre com reserva profética. Propor
alternativas iluminadoras para a humanidade significa, muitas vezes, pagar o
preço da incompreensão, da perseguição e até de alguns fracassos. Assim
aconteceu com Jesus, e assim também sucede com seus discípulos-missionários. A
lógica evangélica dos frutos comporta resultados positivos, mas não se confunde
com o sucesso a qualquer custo. Especialmente se esse está contaminado pela
vaidade e a auto-suficiência.
Por fim, Francisco completa a lista
das atitudes básicas da comunidade de discípulos missionários com o festejar.
Os evangelizadores, cheios de alegria, sabem sempre festejar: celebram
cada pequena vitória, cada passo dado. E se alimentam da liturgia (EG 24).
Saber festejar é uma característica
de quem tem coração de criança. A pessoa encanta-se com os pequenos passos
dados, ri das coisas simples da vida. Não se deixa levar pelo pessimismo. E aquela
alegria, que caracteriza os seguidores de Jesus, tem momentos de auge, de
expressão pessoal e comunitária. É a festa, a celebração das conquistas. Nela,
extravasa-se o contentamento.
Certa vez, um time de futebol conquistou o campeonato
nacional, após mais de 20 anos longe do título. A torcida, especialmente o
setor mais pobres, fez uma grande festa. Multidões sairam às ruas, cantando e
dançando, soltando fogos de artifício, com camisas e bandeiras. Alegria
desmesurada da festa. Neste clima, um programa de TV entrevistou o técnico: “O
que você está sentindo com esta vitória, após tantos anos de luta?” Ele respondeu,
com um tom sério: “Vamos continuar trabalhando para conquistar o título também
no próximo ano”. Ao contrário da torcida, este homem não sabia festejar. Em vez
de se alegrar com o presente, já estava pensando ansiosamente no futuro. Em
qual dos personagens nos vemos mais? A torcida alegre ou o técnico carrancudo?
Conclusão
aberta: uma oração
Nós te damos Graças, Jesus,
Pois tu nos chamas para estarmos contigo,
na alegria missionária e na intimidade itinerante.
Contigo despertamos a cada dia,
pedindo que abras nossos lábios para proclamar teu louvor.
Por ti dedicamos o trabalho cotidiano,
desde fazer o simples café da manhã
até as importantes tarefas a realizar.
Mantém nosso coração alegre e vibrante.
Queremos sair na frente, aprimeirar.
Dá-nos ousadia, desprendimento e coragem.
Para nos envolvermos com as pessoas e os processos,
Acompanhar, frutificar e festejar.
Com a alegria da tua presença
A leveza da tua companhia
A força redentora da tua morte
A energia renovadora da tua ressurreição
Seguiremos o caminho luminoso do Reino.
Amém!
(Parte final de artigo publicado na Revista Convergência - Novembro 2014)
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