domingo, 26 de outubro de 2008

Olhar encantado


Terça-feira de manhã, no Parque das Mangabeiras. Sopra o vento frio de agosto. O sol, estrela adormecida, lança alguns tímidos raios entre as nuvens. Silêncio da natureza, no inverno que gesta a primavera. De repente, chega o grupo de crianças de uma escola pública. Elas correm em direção à Praça das Águas. Apontam os dedos para os peixinhos. Movem-se de um lado para o outro. Entusiasmam-se ao ver as carpas que, tranqüilamente, passeiam pelas águas frias. “Olha lá, que bonito! Quero levar para casa!”... Os seus olhos brilham e brotam sorrisos nos lábios. Um, mais curioso, observa atentamente os peixes e se concentra como se estivesse conversando com eles.
O funcionário do Parque abre o registro das fontes. Quando as águas começam a jorrar para o alto, as crianças entoam um coro espontâneo: “Vivaaa!”. O contentamento se transmuta em euforia. Algumas, mais afoitas, aproveitam-se do vento e se posicionam no lugar aonde podem provar os respingos no rosto e nos braços. Parece que ao ver tanta alegria, até o sol se desperta e vem esquentar o ambiente. Um menino descobre que sobraram alguns grãos de ração para peixes nos espaços do mosaico da calçada. Cuidadosamente, ele e seus companheiros garimpam aquelas migalhas, como se fossem uma preciosidade. Então, lançam na água o alimento e os peixes se aproximam mais. A alegria contagiante nutre a todos.
Jesus, no evangelho, nos diz que o Reino de Deus está reservado para quem tem coração de criança. Ou seja, homens e mulheres capazes de manter o encantamento com a vida, de alegrar-se com as coisas pequenas da existência. Este é um dos segredos para a gente ser feliz e descobrir quantas maravilhas Deus realiza por nós e em nós. Aqui se encontra uma das vertentes mais significativas da simplicidade. Ela nasce de um coração de criança, que exercita a alegria e a gratidão. Infelizes dos pessimistas, dos carrancudos, dos perfeccionistas e ambiciosos! Felizes dos que saboreiam os dons da existência e celebram as belezas que Deus lhes concede, a cada dia!
Recordo-me de um irmão marista que já tem mais de 80 anos. Ele faz questão de mostrar as roseiras que cultiva com carinho ou as verduras da horta. Fala com alegria destas coisas pequenas e partilha sua existência com o encantamento de 25 anos atrás, quando o conheci. Este homem tem o mesmo olhar da criança que olha o peixinho. Mantém no coração a alegria e a gratuidade.Quantos sinais da bondade e do amor de Deus recebemos cada dia. Às vezes, Ele nos brinda com alguns fatos especiais. Como somos amados pelo Senhor. É bom cultivar o olhar de criança, que se encanta e se alegra, com tantas graças!

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

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Jesus, meu mestre e Senhor!
Hoje, novamente, como Pedro, coloco-me à beira do lago (Jo 21,13-19). Já provei do alimento que me dás: não somente pão e peixe, mas também alegria, consolo, fortaleza, iluminação e interpelação; palavras e presenças de pessoas.
Novamente, tu me olhas nos olhos (Mc 10,21). Quantos anos já se passaram, desde que senti intensamente, pela primeira vez, o chamado para te seguir mais de perto!
Hoje, no dia do meu aniversário, olho para trás e parece que foi há muito tempo. Mas sinto também que foi nesta madrugada. Porque o tempo do coração se chama hoje, agora, semente germinada de eternidade.
Tu me perguntas de novo, como fizeste com Pedro: “Tu me amas?”. E me questionas novamente, até uma terceira vez. Muitas e incontáveis vezes. E eu, qual Simão, seguidor e aprendiz de teus caminhos, posso somente dizer: “Sim, eu te quero bem! Tu conheces que meu amor não é perfeito, sabes de meus vacilos, resistências, ilhas de sombras, fragilidades... Ah! Mas tu sabes que te amo!”
Então, tu me pedes: “Nutre meu rebanho, apascenta minhas ovelhas!” Eu te digo: “Não sou pastor oficial, nem presbítero. Apenas irmão. Assim sou conhecido, assim me reconheço. Irmão de todos os que buscam o Senhor da Vida, irmão daqueles(as) que se lançam na bela aventura de nutrir as pessoas com esperança e beleza. Sou pastor também, enquanto participo da imensa corrente de homens e mulheres que anunciam o seu Reino já presente e denunciam o anti-reino”.Jesus, renovo neste dia meu compromisso de te seguir, e de contribuir efetivamente para despertar consciências, mobilizar pessoas, partilhar conhecimento, abrir mentes e corações, em vista de uma sociedade mais humana, justa e sustentável. Amém!

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Para o bom vinho

No correr de minha vida, aprendi com o povo simples e pobre das comunidades cristãs a fazer uma interpretação libertadora da bíblia. Nas comunidades de Base, nos grupos de reflexão, nos círculos bíblicos e nos momentos de oração partilhada descobri a sabedoria do povo, e compreendi a enigmática oração de Jesus: “Pai, eu te agradeço pois escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10,21).
Certa vez, estávamos fazendo uma oração partilhada, a partir do texto de João 2,1-11. Trata-se da narração do primeiro sinal de Jesus, ao transformar a água em vinho, em Caná. Diz-se, a certa altura: “Todos oferecem primeiro o bom vinho, e quando os convidados já estão alegres, faz servir o menos bom. Mas você guardou o bom vinho até agora” (Jo 2,10).
Após a leitura do evangelho, um jovem chamado Cléber tomou a palavra. Eu o conhecia bem. Trabalhava como motoboy e morava no bairro. Fazia o ensino médio, no período noturno. Nos fins de semana, gostava de “tomar umas” com os amigos: cerveja, vinho ou pinga. Não exagerava, felizmente!
Cléber começou dizendo: “Gente, hoje tem muito vinho ruim por aí”. Ao ouvir isso, pensei que ele tivesse feito uma interpretação rasa do texto, meramente literal, aludindo aos vinhos vagabundos que costumava beber. Cléber continuou: “Acabo de vir da minha casa, e tive que separar a briga do meu pai com minha mãe. Eu não deixo o velho bater nela! É...., tem muito vinho ruim”. Houve um breve tempo de silêncio. Ele concluiu: “Meus colegas da quadra, que jogavam bola comigo quando eu era criança, estão quase todos metidos com drogas. Uns consomem, outros ajudam os traficantes. Que vinho ruim, meu Deus! Ah, como eu desejo que o vinho bom de Jesus tome o lugar do vinho ruim!”.
As observações de Cléber levaram o grupo a fazer outras reflexões originais sobre o texto bíblico, ligando-o com a vida. Em meus estudos teológicos, jamais havia escutado algo assim. A interpretação dominante faz a comparação entre a água e o vinho. Cléber foi além. Descobriu a passagem do vinho ruim para o vinho bom. Assim é a leitura comunitária e libertadora da bíblia: abre caminhos inusitados, conscientiza, religa a fé com as questões importantes da existência.