Maria Clara L. Bingemer
Belíssimo
filme: Ida. Um nome de mulher, a história de duas
mulheres, narrada em preto e branco. Temática
muito conhecida e trilhada, mas filmada com extrema originalidade. Sutil,
inteligente, fino e exigente para a mente e o coração do espectador. E de profunda beleza. Saber que ganhou
prêmios em importantes festivais dá esperanças em relação ao gosto de nossos
contemporâneos (..).
Ida começa e acaba em um obscuro e
humilde convento, em uma cidade do interior da Polônia. A personagem central é Anna, aliás Ida, uma
obscura jovem noviça, que se prepara para fazer os votos perpétuos de pobreza,
castidade e obediência. Antes disso,
porém, deverá, por ordem da superiora, empreender uma misteriosa e longa viagem
em busca de sua identidade verdadeira.
Pois, embora seja uma freira católica, Anna não se chama Anna e sim Ida
e não nasceu católica, mas judia.
A única
pessoa que pode revelar-lhe isso é sua tia Wanda, irmã de sua mãe, uma juíza do
Partido Comunista, mulher de vida livre, que bebe e fuma muito, e tem uma
multiplicidade de amantes que a marcam indelevelmente em seu já muito machucado
coração. Após revelar à jovem sua verdadeira origem e nome, essa dupla
improvável de mulheres parte para uma jornada em busca dos restos do passado, a
fim de descobrir mais profundamente quem são.
Pawel Pawlikowski narra com grande maestria a
história de Ida e Wanda em admiráveis interpretações de duas Agatas: Agata
Kulesza (Wanda) e Agata Trzebuchhowska (Ida), as duas atrizes que encarnam a
noviça e a juíza. Enquanto buscam o fio da narrativa de suas vidas e de seus
antepassados, relatam em senso invertido a história da maior tragédia que se
abateu sobre o século XX, o holocausto nazista.
Em hebraico
bíblico, a palavra “holocausto” significa a oferta que sacrifica algo –
normalmente um animal - o qual é
inteiramente consumido pelo fogo e assim sobe como fumaça até Deus. Tratava-se
de um sacrifício expiatório pelo perdão dos pecados, embora também fosse
celebrado em ação de graças e adoração a Deus. O específico do holocausto era o
fato de que a vítima devia ser um animal macho, sem defeito e ser inteiramente
queimado, dele nada restando a não ser seu sangue, separado da carne e
derramado sobre o altar.
No século
passado, Holocausto passou a designar outro evento, coletivo, ganhando o nome
hebraico moderno de Shoá. Enquanto o holocausto bíblico significava
etimologicamente “todo queimado” (holos+kaustos), Shoá é sinônimo de
catástrofe, destruição e identifica o genocídio ou assassinato em massa de
cerca de seis milhões de judeus durante
a Segunda Guerra Mundial, através de um
programa sistemático de extermínio étnico praticado pelo Estado nazista e que
ocorreu em todos os territórios ocupados pelos alemães durante a guerra.
Dos nove milhões de judeus que residiam na
Europa antes do Holocausto, cerca de dois terços foram mortos; mais de um
milhão de crianças, dois milhões de mulheres e três milhões de homens judeus
morreram durante o período. Enquanto o holocausto bíblico oferecia sacrifícios
de animais, o holocausto nazista sacrificava pessoas, famílias inteiras.
Em sua
peregrinação, Ida vai em busca do que restou de sua família em meio ao horror
dos anos do nazismo. Wanda intui o que se passou, mas nunca foi verificar de
perto. A presença de Ida a leva até o
lugar tenebroso onde, em cena tão terrível quanto bela, ambas devem devolver ao
lugar adequado o que lhes foi roubado pela violência e a crueldade de um regime
inumano.
Ambas
mulheres são feitas para abrigar e alumbrar a vida, Wanda e Ida reagem a essa
tremenda experiência de modos diferentes.
Enquanto Wanda não encontra outra maneira de libertar-se do círculo
infernal da morte senão pela própria morte, o caminho de Ida é diferente.
Havendo testado a vida que nunca viveu e contemplado a morte dos seus que nunca
conheceu, a pergunta que lhe resta é: “Por que estou viva e não morta?“
É em busca
da plenitude desta vida que seu caminho a levará. Porém, irá de encontro a uma
vida que consistirá no holocausto de si mesma, oferecendo-se a Deus e aos
outros através da consagração religiosa. A noviça Anna/Ida, que não pronunciara
seus votos, volta a seu convento. É no
caminho para esta casa que o diretor a deixa, não fornecendo detalhes sobre seu
futuro. Cabe a cada espectador escrever seu final.
No ano da
vida consagrada, Ida é um filme que questiona profundamente cada um de nós
sobre o sentido da vida, sobre a alteridade que convoca a uma doação total de
nós mesmos, sobre opções de vidas que não são para todos, mas que certamente
são para alguns e algumas. Às Idas de
ontem e de hoje, que atravessaram as “Shoás” diversas que se apresentaram;
àquelas que tiveram a coragem de responder a um chamado e viver uma vocação por
inteiro, como holocausto de amor nos altares da vida cotidiana, minha admiração
e meu carinho.
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