domingo, 26 de dezembro de 2010

Jane, Lorrane e Gilberto

Era o entardecer da véspera de natal. Caminho pelo centro de Belo Horizonte, após a última reunião de trabalho do ano. De repente, encontro Jane na calçada. Negra, rosto envelhecido, ex moradora de rua, trabalha como lavadora de carro, vende doces e balas. Descobri-a, faz muitos anos, quando eu morava na região. Naquele tempo, ela bebia muito, não tinha sequer um cantinho para moradia e andava na rua com a filha mais nova, que recebeu o nome chique de “Lorrane”. Graças ao trabalho do Irmão Raimundo, que a acolheu carinhosamente e resgatou sua dignidade com a ajuda de outras pessoas, Jane hoje tem um barraco na periferia e a filha freqüenta a escola. Com orgulho, apresentou-me novamente Lorrane: “Ela Já tem 10 anos. Veja como está grande e bonita”. E Jane completou: “Tenho ainda outra filha, de 15 anos, que mora na Itália. Dizem que ela fala três línguas e está bem por lá. Mas eu quero encontrar minha filha!”.
Saí deste inesperado encontro lembrando-me dos pastores que foram visitar Jesus em Belém. Gente pobre, simples, de má fama, são os primeiros a provar da alegria do “Deus conosco”. Imaginei Jane e Lorrane no presépio, na gruta de Belém, olhando para Jesus.

Hoje é natal. Vim para Vila Velha (ES) e após a missa, o padre nos convidou: “Lá fora, na área livre embaixo da ponte, a comunidade está organizando um jantar para o povo de rua e moradores dos abrigos públicos”. Fui lá ver. Tudo bem organizado, comida boa, presentes, grupo acolhedor! Chegaram umas 20 pessoas. Sentei-me à mesa com duas delas. A primeira, Dona Maria, uma senhora que deveria ter uns 75 anos. Vinda do Sul da Bahia, sem recursos, mora num abrigo da prefeitura. Estava transbordando de alegria: alimento saboroso, presentes, música ao vivo. Ah, era demais tanta coisa boa ao mesmo tempo!
Meu segundo companheiro de mesa era um adulto de aproximadamente 35 anos. Gilberto, nascido em Guarapari, é flanelinha e lavador de carro na praia da costa. Hoje trabalhou o dia inteiro. Veio direto para o evento, pois ficou sabendo que ia ter uma festa de graça, de natal. Contou-me que tem quatro filhos pequenos e vive de seu trabalho. Não teve dinheiro para comprar os presentes para as crianças. Quando recebeu os presentes da comunidade, seu rosto se transfigurou. Lentamente, recolheu tudo o que havia recebido numa sacola plástica. Agora teria algo para oferecer aos filhos! Quando terminou de jantar, delicadamente pediu licença, e todo contente foi para casa, levando ainda uma marmita de comida para a mulher e a criançada.

Novamente me veio ao coração a imagem dos pastores de Belém. Desta vez, eu estava sendo visitado pelos pobres. Eles me recordavam não somente os pastores, também o próprio menino Jesus, pobre envolvido em panos, alojado fora da casa. Provei algo do espírito do natal...

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A festa do encontro

A vida humana se enriquece de maneira profunda quando há encontros.

Encontros de pessoas, de grupos, de povos, de nações.
Unir-se de fragmentos, soma transmutada em multiplicação.
Possibilidades de fortalecer e ampliar raízes, estabelecer conecções.
Algo mais do que estar geograficamente ou virtualmente próximo.
Gesto de aproximar-se, romper as solidões, questionar a auto-suficiência, trocar, abrir as mãos, olhar o outro e reconhecer sua alteridade.

Encontrar-se é tecer laços que transformam as diferenças em oportunidades de aprender.
Uma energia boa circula, de forma que os interlocutores se saciam, para buscar novos encontros ou tecer laços mais estreitos nos mesmos encontros.
O natal é a grande celebração do encontro.
Encontro de Deus com a humanidade, a ponto de se fazer um nós, para intensamente se tornar um conosco. Por isso, o menino de Belém é chamado “Emanuel”: Deus conosco.
Viva o natal, a festa do encontro!

Desta luz que ilumina tenuamente a gruta escura de Belém, se expande a Luz que se revela caminho a seguir, verdade em construção, vida comunicada.
Ao redor de Jesus acontecem muitos encontros: Maria, José, os pastores, os magos, o povo que se alegra. E essa alegria contagiante abraço o solo, o ar, a água, a energia do sol, os microorganismos, as plantas, os animais, toda a humanidade.
O filho de Deus se fez carne, se fez matéria. Para fazer-se encontro.
Viva o natal!
Afonso Murad

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Educação no Brasil: longo caminho a percorrer

Segundo a Folha de São Paulo*, “os estudantes brasileiros com 15 anos melhoraram em leitura, ciências e matemática nos últimos nove anos. Seguem, porém, entre os mais atrasados do mundo. A constatação é da avaliação internacional chamada Pisa, coordenada pela OCDE (organização de nações desenvolvidas), que analisou a educação em 65 países".
O exame avalia as áreas a cada três anos. Nesta edição, a prioridade foi leitura, em que a média brasileira avançou 4%. Essa melhora significa que o aluno de hoje tem um conhecimento equivalente a seis meses de aula a mais do que os de 2000, conforme cálculo da Folha”.
O avanço foi "impressionante". Ainda assim, os brasileiros estão com mais de três anos de defasagem ante os chineses, os líderes da lista, que passaram Finlândia e Coreia.
Mas, no ranking o Brasil está na 53ª posição, com nota semelhante a Colômbia e Trinidad e Tobago. Os avanços percentuais em ciências e matemática foram maiores que os de leitura, mas as colocações são semelhantes.
A avaliação aponta que o conhecimento médio do aluno brasileiro permite que ele entenda o núcleo simples em um texto, mas não consegue encontrar, a partir de trechos diferentes, a ideia principal de uma obra.

A notícia faz pensar. De um lado, houve melhoria na educação, fruto de imensa dedicação de professores, professoras, e gestores(as) que no cotidiano das escolas públicas e particulares, tem se dedicado com afinco à sua missão. Embora menos do que seria preciso, convém ressaltar ainda o compromisso do poder público de vários municípios, estados e da Governo Federal. De outro lado, estamos com uma situação ainda muito aquém do aceitável para uma nação com tanto potencial. A superação da pobreza e da exclusão social exige mais atenção à educação e aos educadores, nos diversos níveis. Nesta tarefa, todos nós que atuamos em escolas ou universidades nos chamamos interpelados! E temos que fazer ouvir nossas conquistas e nosso clamor.

*FSP,8 dezembro 2010

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Participação no "Religare"

Semana passada foi apresentada a primeira parte de minha entrevista no programa "Religare", produzido pelo Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da PUC-Minas, sob a coordenação de Flávio Senra, e exibido pela TV Horizonte.
Na ocasião, conversamos sobre o nosso recente livro "A casa da Teologia", redigido por Paulo Roberto Gomes, Susie Ribeiro e eu. Uma obra em perspectiva dialogal, ecumênica e didática. Dali a conversa se estendeu para a questão da religião da sociedade contemporânea.
O assunto continua no programa que será exibido hoje às 23h, e reprisado em outros horários. Logo que eu tiver cópia do vídeo, vou editar partes no youtube.
Quem for de BH, está convidado a acompanhar o programa.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Fé e ciências: o diálogo

Participei do programa "Em Pauta", da Rede Canção Nova, transimitido hoje. Trata-se de um espaço para discutir questões contemporâneas à luz da fé cristã, sob a coordenação serena de Padre Hamilton e a presença reflexiva de Frei Moser, conceituado pesquisador e professor de Ética Cristã.
Tenho grande respeito por Frei Moser, sobretudo porque é um homem que vários aspectos reflete além do seu tempo. É um visionário. Quando ninguém ainda falava de ecologia no horizonte da fé cristã, Moser lançou um livrinho sobre o tema. Foi a primeira obra que li sobre isso, na década de 80, e sem conhecê-lo, já o admirava. Mais tarde, Moser lançou no horizonte eclesial brasileiro a discussão sobre bioética. Foi instigante! Agora, no programa "Em Pauta", estávamos os dois lado a lado, partilhando saberes numa conversa de alto nível.
Já estive neste programa em outras duas ocasiões. Desta vez, o tema foi "Fé e ciência". Moser abordou a posição dos pesquisadores das ciências exatas e biológicas quanto à crença em Deus.
De minha parte, mostrei que o conceito de ciência é polissêmico. O possível diálogo da fé cristã com as ciências depende inicialmente de que área do conhecimento estamos tratando. Além disso, a fé cristã comporta um grau de "razoabilidade", de busca de compreensão. Neste sentido, a teologia é a "ciência da fé", que busca compreender o ser humano e o mundo à luz da revelação.
O cristão necessita de muitos saberes para atuar de forma correta e eficaz. Cada vez mais necessitamos das ciências e de outras saberes. No entanto, a pergunta sobre o sentido radical da vida e da morte ultrapassa o horizonte das ciências. Coloca-nos diante da Gratuidade Radical, do mistério. E para nós, que cremos, ele tem um Nome e um Rosto.
Creio que o diálogo da fé cristã com as ciências é fundamental na sociedade contemporânea. Neste diálogo nos colocamos simultaneamente como aprendizes, interlocutores e colaboradores, em busca da Verdade iluminadora e amorosa, que vai à nossa frente e nos ultrapassa.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Educação e valores

Como educar para valores consistentes, numa sociedade em constante mudança? O que caracteriza o ämbito dos valores na escola cristã? Estes temas foram colocados e discutidos no Congresso de Educação das Irmäs Sacramentinas, em Itaici (SP). Estive lá com este grupo de 380 educadores de 5 escolas (4 do nordeste e 1 do sudeste), numa experiência estimuladora: intensa participação dos professores(as), intervenções significativas na discussão, bom nível de reflexão e partilha de experiências.
Partilho com você alguns eslaides que utilizei.
Parabéns às Irmãs e aos educadores(as) sacramentinos!







segunda-feira, 4 de outubro de 2010

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Estudantes de Escatologia no ISTA

Terminei hoje o curso semi-intensivo de Escatologia, com a turma do quarto ano de teologia do ISTA (Instituto Santo Tomás de Aquino), em Belo Horizonte. As avaliações orais foram muito boas! (As provas escritas, não vi ainda). Sem dúvida, um consolo e estímulo nestes tempos difíceis para quem lida com educação neste país.
Espero que os estudantes, membros de distintos institutos religiosos, ao terminar o curso, contribuam efetivamente para uma teologia inculturada e em diálogo com o mundo contemporâneo.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Viva a primavera!!!!

Partilho com você este belo poema de Cecília Meireles. Viva as primaveras!
A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.

Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.

Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.

Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.