quinta-feira, 1 de maio de 2008

É mais fácil de lavar!

No intervalo de um congresso, encontrei Carla, a quem não via há quatro anos. Guardava dela a lembrança de uma mulher jovem, morena e bonita, com um largo sorriso e belos cabelos longos. Na época, ela trabalhava como secretária de um amigo meu e participava do Grupo de Jovens da Igreja. Agora, me deparo uma mulher vestida com uma longa saia, sem qualquer adereço feminino. O que me estranhou mesmo foi vê-la com o cabelo cortado, bem curtinho. Ela tinha perdido alguma coisa de sua aparência feminina. Perguntei-lhe sobre sua vida recente. Ela me disse: “Mudei de Vida! Agora faço parte de um movimento religioso”. Tentando entender, eu me perguntava porque uma pessoa que se consagra a Deus, num movimento, numa Igreja, ou numa religião, tem que mostrar que está tão fora do mundo. Arrisquei uma pergunta: “Por que você cortou o cabelo assim, tão curtinho?” Meio sem graça, ela me disse: “É mais fácil de lavar”.
Confesso que a resposta não me convenceu. E ela acrescentou: “Lembra-se da Rosa? Ela também está participando do movimento”. Rosa era um adolescente, que eu conheci num curso de teologia para leigos. Branquinha, com espinhas no rosto, tinha uns cabelos enroladinhos, que lembravam os anjinhos barrocos das Igrejas de Ouro Preto. Na ocasião, procurava uma vida mais radical, mais próxima a Deus e de serviço aos outros. Então, Rosa me viu de longe e veio me abraçar. Fiquei feliz ao encontrar com ela. Mas, as duas tinham adquirido o mesmo perfil masculinizado. Quando Carla se virou para falar com outra pessoa, fiz a mesma pergunta para Rosa: Por que você cortou o cabelo? Ela respondeu sem pestanejar: “É! É mais fácil de lavar”.
Talvez este fato, tão corriqueiro, seja um sintoma de algo mais sério. Alguns grupos religiosos respondem a uma sociedade consumista, centrada nas vaidades pessoais, no culto exagerado do próprio corpo, na ausência de valores espirituais, indo ao outro extremo. Tratam de negar o próprio corpo, e com isso reforçam o dualismo corpo-alma, corpo e espírito, estética e mística. Com seu estilo de vida, denunciam a superficialidade da corpolatria, mas não o fazem em perspectiva de diálogo com a sociedade contemporânea. No fundo, o esquema é simples: “se o mundo é mau, vamos nos isolar dele”. Se a sociedade contemporânea colocou o estético acima do ético, considerou a aparência do belo acima do que é o bom, vamos afirmar o bem negando o belo.
Ora, por que alguém consagrado a Deus deve ser feio, desajeitado, com mau gosto? É preciso descobrir outra saída. É necessário levar em conta os valores da beleza, do estético, do cuidado com o corpo, mas sem absolutizá-los. Ao percorrer os textos bíblicos do Novo Testamento, escritos em grego, nota-se que o adjetivo “kalós” significa tanto “bom” quanto “belo”. Pois o Deus que se manifesta em Jesus é tão bom é belo também. A beleza mais profunda, que não é meramente cosmética, se radica no bem. Embora historicamente as duas não coincidam sempre, a beleza pode ser uma expressão original da bondade. A estética deve ter uma dimensão ética. Assim, afirmamos que a capacidade humana de construir relações de qualidade, de sonhar e de se engajar em projetos históricos de mudança, é boa e bela. Como canta o compositor nordestino Zé Vicente: “É bonita demais, é bonita demais, a mão de quem conduz a bandeira da paz”.

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