No correr de minha vida, aprendi com o povo simples e pobre das comunidades cristãs a fazer uma interpretação libertadora da bíblia. Nas comunidades de Base, nos grupos de reflexão, nos círculos bíblicos e nos momentos de oração partilhada descobri a sabedoria do povo, e compreendi a enigmática oração de Jesus: “Pai, eu te agradeço pois escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10,21).
Certa vez, estávamos fazendo uma oração partilhada, a partir do texto de João 2,1-11. Trata-se da narração do primeiro sinal de Jesus, ao transformar a água em vinho, em Caná. Diz-se, a certa altura: “Todos oferecem primeiro o bom vinho, e quando os convidados já estão alegres, faz servir o menos bom. Mas você guardou o bom vinho até agora” (Jo 2,10).
Após a leitura do evangelho, um jovem chamado Cléber tomou a palavra. Eu o conhecia bem. Trabalhava como motoboy e morava no bairro. Fazia o ensino médio, no período noturno. Nos fins de semana, gostava de “tomar umas” com os amigos: cerveja, vinho ou pinga. Não exagerava, felizmente!
Cléber começou dizendo: “Gente, hoje tem muito vinho ruim por aí”. Ao ouvir isso, pensei que ele tivesse feito uma interpretação rasa do texto, meramente literal, aludindo aos vinhos vagabundos que costumava beber. Cléber continuou: “Acabo de vir da minha casa, e tive que separar a briga do meu pai com minha mãe. Eu não deixo o velho bater nela! É...., tem muito vinho ruim”. Houve um breve tempo de silêncio. Ele concluiu: “Meus colegas da quadra, que jogavam bola comigo quando eu era criança, estão quase todos metidos com drogas. Uns consomem, outros ajudam os traficantes. Que vinho ruim, meu Deus! Ah, como eu desejo que o vinho bom de Jesus tome o lugar do vinho ruim!”.
As observações de Cléber levaram o grupo a fazer outras reflexões originais sobre o texto bíblico, ligando-o com a vida. Em meus estudos teológicos, jamais havia escutado algo assim. A interpretação dominante faz a comparação entre a água e o vinho. Cléber foi além. Descobriu a passagem do vinho ruim para o vinho bom. Assim é a leitura comunitária e libertadora da bíblia: abre caminhos inusitados, conscientiza, religa a fé com as questões importantes da existência.
2 comentários:
Eu pratico com um grupo de maes a leitura orante da Biblia. E muito bom, a partilha ajuda a conhecer a Biblia e aos amigos tambem.
A partilha é o que hoje está faltando. a partilha do anúncio, do amor, do pão, da palavra e principalmente dos dons.
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