quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Memória e indignação

Recente pesquisa da Datafolha aponta que grande parte dos brasileiros desconhece o AI-5, instrumento utilizado pelo regime militar, há 40 anos atrás, para suspender as liberdades democráticas e conceder força extraordinária aos donos do poder. Na época, eu tinha 10 anos. Meu pai, um homem notadamente conservador, acolheu o dito “Ato Institucional Número 5” como um remédio salvador para nação, frente ao perigo do comunismo.
Recordo-me do que veio depois: o clima de perseguição e de medo, o aniquilamento da cidadania. Qualquer um que ousasse levantar a cabeça era classificado como “subversivo”. O golpe de estado recebeu o belo nome de “Revolução de 31 de março”. Estudávamos Educação Moral e Cívica na Escola e cultivávamos a ilusão de que “ninguém segura mais este país”. Houve atrocidades, torturas, assassinatos e desaparecidos. Felizmente, isso acabou. Parece que houve um “perdão do passado”, para além da anistia política. Guardaram-se poucas marcas deste tempo terrível, com exceção de familiares de vítimas diretamente envolvidas.
Estamos colhendo frutos remotos deste tempo de inconsciência política. A geração nascida depois de 68 não desenvolveu o senso de cidadania, de luta e de reivindicação, como a anterior. Após duros golpes, o movimento estudantil não conseguiu recuperar seu vigor. Perdeu-se numa multiplicidade de tendências políticas, algumas delas anacrônicas. O movimento sindical, após ressurgir ao final da década de 70, com a greve do ABC, também dá mostras de perda de vitalidade. Hoje, engajar-se em movimentos populares, aderir a iniciativas sócio-ambientais e tomar parte em lutas cidadãs se tornou mais desafiador ainda. Uma aventura para poucos.
Parece que perdemos a memória. E com ela, a indignação. Ora, sem memória e indignação não há mudança. O compositor Geraldo Vandré, um ícone da arte engajada nos tempos de 68, compôs após a prisão e a tortura uma música que começa assim: “Maria, me dê memória. Depois, se puder, perdão”. Aliás, o perdão não pode ser confundido com inconsciência, esquecimento, ou qualquer outra alternativa escapista que serve para premiar os dominadores e manter a situação de injustiça.
Neste contexto, é importante redescobrir a figura dos profetas da bíblia.
Os profetas diziam que o remédio para a iniqüidade social não era o esquecimento, e sim a justiça. Na tradição judaica, essa palavra era algo mais do que a realidade forense ou legal de dar a cada um o que ele merece. A justiça significava simultaneamente conversão das pessoas e das estruturas, atitudes individuais e ações coletivas, criação de novas relações. Ao mesmo tempo em que os profetas anunciavam a misericórdia e o perdão de Deus, mantinham a indignação e a consciência social. Este critério era tão decisivo, que questionava até a própria religião. Assim Isaías denuncia a religiosidade vazia e alienante: “Esse povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim”. E proclama: “Aprendam a fazer o bem. Procurem a justiça, defendam o direito do fraco” (Is 1,17).
Hoje, em diversos canais de TV ou de rádio, se escutam preces de pregadores, pastores e padres. Por que se pede a Deus somente milagres, curas e prosperidade pessoal? Por que as pessoas são mobilizadas somente para resolver o seu problema? É tempo de suplicar: Senhor, dá-nos memória e indignação! É também momento de cultivar a memória e despertar as consciências para ação coletivas. Assim, a memória tece o fio da história. E a indignação ética mobiliza as forças transformadoras.

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