A palavra “escatologia” é a composição de dois termos gregos: “escaton” e “logos”. Escaton literalmente quer dizer “último”, “definitivo”. E “logos” é o termo técnico que tem muitos sentidos, como palavra, verbo, intelecção, discurso sobre algo. Normalmente, o seu derivado “logia” significa “estudo sobre algo”. Assim, por exemplo, biologia é o estudo sobre as diversas formas de vida; enquanto a ecologia é o estudo sobre como todas as formas de vida se relacionam na casa comum do nossa planeta (em grego, oikos significa casa). No nosso caso, Escatologia seria então o estudo sobre o último e definitivo. Somente por esta definição, podemos perceber que o conceito de escatologia sofreu uma redução. Em vez de ser um estudo sobre o último e definitivo da nossa existência pessoal, coletiva e planetário, foi considerada como o estudo sobre o que vai acontecer depois da morte e do fim do mundo. Ou seja, a escatologia passou a ser o estudo sobre “as últimas coisas”, também chamados de “novíssimos”, a partir da expressão latina que lhe deu origem. Estranhamente, na nossa linguagem coloquial novíssimo tem um sentido bem diferente, é o superlativo de novo, quer dizer uma novidade cheia de surpresa, algo que está acontecendo agora ou acabou de se realizar. Mas, na teologia e no catecismo tradicionais, “novíssimos” aponta para “as últimas coisas que vão acontecer ainda”. E como tudo já estava muito claro e definido no catecismo, não há como esperar por novidades. As imagens que herdamos sobre céu, inferno, purgatório e segunda vinda de Jesus já estão tão cristalizadas, e aludem a coisas tão previsíveis, sem deixar espaço à gratuidade de Deus, que são “velhíssimas”.
Que tipo de estudo é a escatologia? Ela é uma disciplina que faz parte de um saber mais amplo, a teologia cristã. Não se trata de um estudo sobre a morte e o além morte, usando somente o saber de diferentes ciências, como a psicologia, a biologia, a medicina, ou física quântica. A contribuição destas ciências é importante para a teologia, mas esta fala sobre as realidades últimas e definitivas à luz da fé cristã. E a fé é algo vivo, que herdamos dos que vieram antes de nós, e assumimos como um compromisso pessoal e comunitário. Enquanto disciplina da teologia, a escatologia se constrói a partir da Bíblia, levando em conta a experiência de fé acumulada pelas Igrejas cristãs, que chamamos Tradição (com T maiúscula, para diferenciar das simples tradições), e as questões atuais colocadas pela humanidade, em diferentes culturas. A escatologia é uma interpretação cristã sobre o último e definitivo, para cada pessoa e para o mundo, articulando Bíblia, Tradição e Sinais dos Tempos.
Portanto, a escatologia, como uma parte da teologia, se propõe a refletir sobre o último e definitivo na vida humana, incluindo a morte e a vida eterna. Mas, que autoridade ela tem para fazer isto? Os descrentes ou desconfiados afirmam: “Vocês estão inventando coisas a partir da imaginação. Ninguém viajou para o além e depois voltou para contar como as coisas se passam lá”. Os Espíritas, que seguem Alan Kardec responderão com tranqüilidade: “Nós temos o método e o caminho para falar com os espíritos dos mortos. O que afirmamos sobre o além está testemunhado pelos espíritos que se comunicam conosco, através dos médiuns”. Os cristãos responderão de outro jeito: “Podemos falar sobre as realidades após a morte a partir daquilo que experimentamos na nossa vida de fé, hoje”. Citando Hebreus 11,1: “A fé é um modo de possuir desde agora o que se espera, um meio de conhecer realidades que ainda não se vêem”. Assim, falamos do Céu como comunhão plena com Deus não só porque a Bíblia nos promete, mas também porque, na fé, já experimentamos como a sintonia com Deus nos enche de paz e de alegria. No outro extremo, supomos a possibilidade real do inferno, não somente porque a Escritura alerta sobre isso, mas também porque também provamos como é ruim estar longe de Deus.
São Paulo, quando escreveu à comunidade de Corinto, na qual havia muitos membros convertidos de religiões marcadas pela cultura grega, fez um esforço enorme para explicar sobre a ressurreição dos mortos. Ele se serviu de imagens de seu tempo. Foi muito feliz, ao mostrar que entre esta vida e a vida eterna há uma relação de continuidade e também de ruptura. Sabemos que Deus levará à consumação aquilo que construímos aqui de forma imperfeita e provisória. Mas não podemos afirmar, de maneira matemática, como vai ser. É legítimo usar imagens, comparações, analogias. Sabendo que elas nos abrirão algo do futuro, mas deixarão também diante do radicalmente novo, da qual não podemos dizer ainda. Veja 1 Cor 15,37-38,42-44: O que você semeia não é a planta que deve nascer, mas um grão nu (..) Depois, Deus lhe dá corpo como quer, e a cada semente, de maneira própria (...) Acontece o mesmo com a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, ressuscita incorruptível (..) é semeado na fraqueza mas ressuscita cheio de força, é semeado corpo animal, mas ressuscita corpo espiritual”.
O cristão não deve falar sobre o após-morte como se estivesse fazendo uma reportagem antecipada para a mídia. Cuidado e respeito são necessários, para não dar margem à “ficção teológica”. A linguagem adequada para fazer escatologia é a da esperança, aberta para o futuro. Por isso, deve conciliar a precisão dos conceitos com a linguagem aberta e criativa da poesia, da analogia e das metáforas. Afirmará com a certeza da fé, mas também com a humildade da esperança, pois as realidades do após-morte estão muito além de nossa compreensão. Em parte falamos, em parte nos calamos em respeitoso silêncio e reverência ao mistério que nos ultrapassa.
Por hora, fiquemos com uma definição inicial sobre Escatologia Cristã: disciplina da teologia que estuda sobre o último e definitivo em todas as coisas, especialmente sobre a morte e o destino final do ser humano e do mundo.
2 comentários:
Murad, gostei muito de sua palestra. Continue assim! Faz bem para gente.
Gostaria de ater-me aqui somente ao dilema do ser humano sobre o sofrimento e a maldade existente no mundo, não tenho nenhuma pretensão de escrever um tratado sobre a escatologia cristã e todos os seus aspectos, pois já existem tais tratados, mais gostaria de maneira mais sintetizada possível, mostrar que a teologia cristã, a escatologia exercem um papel de suma importância quando falamos do dualismo religioso que se instaurou no mundo, desde as civilizações mais remotas que se tem história.
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