terça-feira, 4 de novembro de 2008

Falta um pecado!

Vanderlei, jovem padre recém-ordenado, é chamado para atender os jovens crismandos da comunidade, no sacramento da reconciliação. Acolhe com paciência e alegria cada um dos quase 50 adolescentes e jovens. Para sua surpresa, apesar de grande diversidade de expressões, roupas e tipos físicos, os jovens relatam praticamente os mesmos pecados. Ele fica sem entender. Pensa consigo mesmo: “Dizem que o mundo de hoje é tão plural, que as pessoas pensam diferente, mas aqui é tudo muito igual...”
Antes da missa de domingo à noite, aproxima-se dele um adolescente de cabelos longos, barba rala, brinco na orelha, e um vivo olhar. Um pouco acanhado, Anderson lhe diz:
- Padre Vanderlei, eu esqueci um pecado da lista. Falta um pecado.
- Que lista?
- A lista dos pecados, que a catequista deu para gente.
Vanderlei se contém e nada fala. No fim de semana seguinte, convida Anderson para uma conversa. Após momentos descontraídos, que serviram para iniciar uma relação de confiança, o padre lhe pergunta:
-O que você achou da lista de pecados?
Anderson pensa um pouco, olha nos seus olhos. Então acontece um diálogo:
- Véio, posso ser sincero? Acho horrível! Se eu contar para meus amigos, eles não vão acreditar que hoje tem uma lista dessas. Eles (os catequistas) tratam a gente de maneira infantil. Eu não preciso de lista de coisas erradas. Eu sei que tem muitos jovens por aí que estão perdidos, sem rumo, já não sabem o que é certo ou errado. Mas, uma lista destas é ridícula!
- Se você fosse o catequista, o que faria?
- , gostei da sua pergunta, padre. Isso é que está faltando na catequese da crisma. Elas não perguntavam nada para gente. Já traziam as respostas prontas. Imaginavam que a gente não tem nada na cabeça.
- Então, o que você faria? (insiste Padre Vanderlei).
- A gente não quer regras para engolir goela abaixo. Eu faria a “lista de pecados” junto com a galera. Eu daria algumas dicas para a conversa não se perder, e questionaria muito, para que pensassem nas suas atitudes.
- Gostei do que você disse! Então você pensa que as pessoas precisam de critérios para julgar, não de listas prontas. O pecado existe, mas ele não é o mais importante na vida cristã.
- Isso! Não agüento este povo que só fica enchendo a nossa cabeça de culpa. Eu acho que precisamos fazer também outra lista. Uma lista aberta. A lista da “corrente do bem”, das coisas que nós podemos fazer para mudar este mundo. Dá até para começar uma comunidade no Orkut! A Igreja tem que mostrar pra gente que é melhor fazer as coisas certas, ser criativo, estar linkado com o bem, do que estar nessa neura de pecado prá todo lado. Ser santo não é ser bobo!
Vanderlei pôs a mão no queixo. Seu semblante ficou sério. Depois, veio um discreto sorriso. Percebeu que tinha muito que aprender! Este foi um sinal para a sua vocação. Como Padre, ele não seria simplesmente o ministro do altar e do púlpito, e sim um pastor e companheiro dos jovens. E sobretudo, um agente de mudanças, junto com os leigos. Era o começo de uma fascinante missão.

domingo, 26 de outubro de 2008

Olhar encantado


Terça-feira de manhã, no Parque das Mangabeiras. Sopra o vento frio de agosto. O sol, estrela adormecida, lança alguns tímidos raios entre as nuvens. Silêncio da natureza, no inverno que gesta a primavera. De repente, chega o grupo de crianças de uma escola pública. Elas correm em direção à Praça das Águas. Apontam os dedos para os peixinhos. Movem-se de um lado para o outro. Entusiasmam-se ao ver as carpas que, tranqüilamente, passeiam pelas águas frias. “Olha lá, que bonito! Quero levar para casa!”... Os seus olhos brilham e brotam sorrisos nos lábios. Um, mais curioso, observa atentamente os peixes e se concentra como se estivesse conversando com eles.
O funcionário do Parque abre o registro das fontes. Quando as águas começam a jorrar para o alto, as crianças entoam um coro espontâneo: “Vivaaa!”. O contentamento se transmuta em euforia. Algumas, mais afoitas, aproveitam-se do vento e se posicionam no lugar aonde podem provar os respingos no rosto e nos braços. Parece que ao ver tanta alegria, até o sol se desperta e vem esquentar o ambiente. Um menino descobre que sobraram alguns grãos de ração para peixes nos espaços do mosaico da calçada. Cuidadosamente, ele e seus companheiros garimpam aquelas migalhas, como se fossem uma preciosidade. Então, lançam na água o alimento e os peixes se aproximam mais. A alegria contagiante nutre a todos.
Jesus, no evangelho, nos diz que o Reino de Deus está reservado para quem tem coração de criança. Ou seja, homens e mulheres capazes de manter o encantamento com a vida, de alegrar-se com as coisas pequenas da existência. Este é um dos segredos para a gente ser feliz e descobrir quantas maravilhas Deus realiza por nós e em nós. Aqui se encontra uma das vertentes mais significativas da simplicidade. Ela nasce de um coração de criança, que exercita a alegria e a gratidão. Infelizes dos pessimistas, dos carrancudos, dos perfeccionistas e ambiciosos! Felizes dos que saboreiam os dons da existência e celebram as belezas que Deus lhes concede, a cada dia!
Recordo-me de um irmão marista que já tem mais de 80 anos. Ele faz questão de mostrar as roseiras que cultiva com carinho ou as verduras da horta. Fala com alegria destas coisas pequenas e partilha sua existência com o encantamento de 25 anos atrás, quando o conheci. Este homem tem o mesmo olhar da criança que olha o peixinho. Mantém no coração a alegria e a gratuidade.Quantos sinais da bondade e do amor de Deus recebemos cada dia. Às vezes, Ele nos brinda com alguns fatos especiais. Como somos amados pelo Senhor. É bom cultivar o olhar de criança, que se encanta e se alegra, com tantas graças!

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

51


Jesus, meu mestre e Senhor!
Hoje, novamente, como Pedro, coloco-me à beira do lago (Jo 21,13-19). Já provei do alimento que me dás: não somente pão e peixe, mas também alegria, consolo, fortaleza, iluminação e interpelação; palavras e presenças de pessoas.
Novamente, tu me olhas nos olhos (Mc 10,21). Quantos anos já se passaram, desde que senti intensamente, pela primeira vez, o chamado para te seguir mais de perto!
Hoje, no dia do meu aniversário, olho para trás e parece que foi há muito tempo. Mas sinto também que foi nesta madrugada. Porque o tempo do coração se chama hoje, agora, semente germinada de eternidade.
Tu me perguntas de novo, como fizeste com Pedro: “Tu me amas?”. E me questionas novamente, até uma terceira vez. Muitas e incontáveis vezes. E eu, qual Simão, seguidor e aprendiz de teus caminhos, posso somente dizer: “Sim, eu te quero bem! Tu conheces que meu amor não é perfeito, sabes de meus vacilos, resistências, ilhas de sombras, fragilidades... Ah! Mas tu sabes que te amo!”
Então, tu me pedes: “Nutre meu rebanho, apascenta minhas ovelhas!” Eu te digo: “Não sou pastor oficial, nem presbítero. Apenas irmão. Assim sou conhecido, assim me reconheço. Irmão de todos os que buscam o Senhor da Vida, irmão daqueles(as) que se lançam na bela aventura de nutrir as pessoas com esperança e beleza. Sou pastor também, enquanto participo da imensa corrente de homens e mulheres que anunciam o seu Reino já presente e denunciam o anti-reino”.Jesus, renovo neste dia meu compromisso de te seguir, e de contribuir efetivamente para despertar consciências, mobilizar pessoas, partilhar conhecimento, abrir mentes e corações, em vista de uma sociedade mais humana, justa e sustentável. Amém!

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Para o bom vinho

No correr de minha vida, aprendi com o povo simples e pobre das comunidades cristãs a fazer uma interpretação libertadora da bíblia. Nas comunidades de Base, nos grupos de reflexão, nos círculos bíblicos e nos momentos de oração partilhada descobri a sabedoria do povo, e compreendi a enigmática oração de Jesus: “Pai, eu te agradeço pois escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10,21).
Certa vez, estávamos fazendo uma oração partilhada, a partir do texto de João 2,1-11. Trata-se da narração do primeiro sinal de Jesus, ao transformar a água em vinho, em Caná. Diz-se, a certa altura: “Todos oferecem primeiro o bom vinho, e quando os convidados já estão alegres, faz servir o menos bom. Mas você guardou o bom vinho até agora” (Jo 2,10).
Após a leitura do evangelho, um jovem chamado Cléber tomou a palavra. Eu o conhecia bem. Trabalhava como motoboy e morava no bairro. Fazia o ensino médio, no período noturno. Nos fins de semana, gostava de “tomar umas” com os amigos: cerveja, vinho ou pinga. Não exagerava, felizmente!
Cléber começou dizendo: “Gente, hoje tem muito vinho ruim por aí”. Ao ouvir isso, pensei que ele tivesse feito uma interpretação rasa do texto, meramente literal, aludindo aos vinhos vagabundos que costumava beber. Cléber continuou: “Acabo de vir da minha casa, e tive que separar a briga do meu pai com minha mãe. Eu não deixo o velho bater nela! É...., tem muito vinho ruim”. Houve um breve tempo de silêncio. Ele concluiu: “Meus colegas da quadra, que jogavam bola comigo quando eu era criança, estão quase todos metidos com drogas. Uns consomem, outros ajudam os traficantes. Que vinho ruim, meu Deus! Ah, como eu desejo que o vinho bom de Jesus tome o lugar do vinho ruim!”.
As observações de Cléber levaram o grupo a fazer outras reflexões originais sobre o texto bíblico, ligando-o com a vida. Em meus estudos teológicos, jamais havia escutado algo assim. A interpretação dominante faz a comparação entre a água e o vinho. Cléber foi além. Descobriu a passagem do vinho ruim para o vinho bom. Assim é a leitura comunitária e libertadora da bíblia: abre caminhos inusitados, conscientiza, religa a fé com as questões importantes da existência.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Primavera


Chegou a primavera.
Bela palavra, esta: prima + vera.
Dois termos latinos: primeira + verdadeira.
Por mais longo que seja o inverno, a primavera vem.
Pois a verdade primeira, aquela que prepara todas as outras, são seus sinais: as flores, a beleza que vem de dentro, a esperança que renasce, o canto de pássaros e de pessoas.
Nisto creio, por isso aposto minha vida.
Nesta verdade primeira.
Prima vera.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Fazer e desfazer anos

O poeta e escritor Rubem Alves escreveu: “comunico aos meus leitores que desfiz 75 anos, muito embora os distraídos insistam em usar o verbo “fazer”. O fato é que a celebração de mais um ano de vida é a celebração de um desfazer, um tempo que deixou de ser, não mais existe. Fósforo que foi riscado. Nunca mais acenderá. Daí a profunda sabedoria do ritual de soprar as velas em festas de aniversário. Se uma vela acesa é símbolo de vida, uma vez apagada ela se torna símbolo de morte. O que não entendo é a razão pela qual os participantes, diante das velas apagadas, se ponham a bater palmas e a rir, quando o certo seria que chorassem. Eu prefiro um ritual mais alegre: acender uma vela bem grande, como um bruxedo de invocação dos anos ainda não nascidos cujo número não sei!”
Há nas palavras deste grande pensador brasileiro um ar de tristeza, e talvez até de dificuldade em aceitar os limites da idade e do envelhecer. O próprio Rubem Alves já havia dito: “Imaginem que vocês vão fazer uma viagem. A felicidade da viagem começa antes da viagem. A gente examina mapas, lê artigos sobre os lugares que vão ser visitados, conversa com amigos que já foram, olha fotografias. E só de imaginar fica feliz. Depois de feita a viagem é diferente. A felicidade ficou para trás. Só resta ver as fotos e conversar... Criança é quem ainda não viajou e fica feliz imaginando a viagem. Viagem imaginada é sempre feliz. Adulto é quem já viajou e fica feliz olhando as fotos da viagem (...) Tive algumas dores quando era criança. Mas as dores passavam logo. E a alegria voltava. Fui um menino sempre alegre. Tudo no mundo me encantava. Menino, eu não imaginava que, um dia, eu seria velho...Pois esse dia chegou. Meu aniversário me diz que agora sou velho”.
Fiquei pensativo! Algo me dizia que há outras formas de considerar o poente da existência. Dias depois fui trabalhar com um grupo de religiosas e leigos sobre o tema “Gestão e Espiritualidade”, em São Paulo. Eram umas 50 pessoas. Bem na frente, havia uma senhora com o rosto enrugado, óculos grossos, a coluna um pouco encurvada. Notava-se que tinha idade avançada. Participa animadamente da discussão em pequenos grupos, anotava as idéias principais. Um discreto sorriso vinha-lhe à face. Vibrava quando alguma idéia nova vinha à tona. Em certo momento, falamos sobre gestão participativa, e seus olhos brilharam.
Mais tarde, na hora do intervalo, ela veio me cumprimentar. Fiquei sabendo então que a anciã se chama Irmã Mariana. Tem 85 anos e atua com uma equipe de leigos num centro sócio-educativo no interior de São Paulo, que atende a 150 crianças empobrecidas. Ela me disse como alegria:
“Estou descobrindo como é bom trabalhar em grupo. Durante muito tempo em minha vida atuei sozinha. Agora vejo que, com os outros, é melhor”.
Mariana, com seus 85, não desfaz anos. Mantém o coração de criança e o espírito de aprendiz; aquele sopro de renovação que Rubem Alves anuncia nos seus belos textos poéticos. Envelhece de outra forma, saboreando o presente e com o olhar no futuro. Ao final da palestra, deixei para o público presente meu email e o endereço do blog. Mariana comentou: “Comecei a aprender a mexer com computador aos 75 anos. Que bom, agora vou descobrir o que é um blog!”

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Pára-raios, antenas e terraços

Outro dia, estava no último andar de um prédio, na cidade de São Paulo. Conversava com um grupo de educadores e profissionais sobre “Espiritualidade”. Ao ver aquela paisagem me vieram à mente algumas imagens urbanas para falar do tema. Três componentes me chamaram a atenção, no alto de tantos prédios enfileirados: os pára-raios, as antenas e os terraços.
A espiritualidade moderna funciona como um pára-raios. O ser humano, atribulado por tantos problemas pessoais, como relações afetivas, dificuldades para educar os filhos, crise financeira, doenças psico-somáticas, estresse e perda crescente de sentido para viver, recorre ao sagrado em busca de alívio. As experiências religiosas emotivas fortes caracterizam grande parte da mística contemporânea, para diminuir suas tensões. Isso explica em parte o crescimento vertiginoso do pentecostalismo evangélico e da renovação carismática católica. A religiosidade tem uma função terapêutica. Na verdade, pode curar ou simplesmente atenuar a dor e o sofrimento.
A espiritualidade do pára-raios é ambígua. De um lado, ela abarca uma dimensão real da experiência espiritual, quando as pessoas provam a misericórdia e a bondade de Deus, aliviam suas dores e recuperam a alegria de viver. Muitas delas conseguem superar graves estados de desespero e degradação, quando se conectam com Deus e descobrem que a vida não está perdida. De outro lado, a relação com o sagrado pode se tornar funcional. As pessoas buscam a Jesus somente nos momentos de tempestade. Além disso, a relação entre céu-terra parece vir somente de cima. Anula-se o valor das realidades humanas, pois elas estão submetidas ao critério dos “raios celestes”. A experiência religiosa intensa pode ofuscar outras dimensões da realidade humana e dar margem à intolerância e às novas formas de opressão.
Prefiro imaginar a espiritualidade como antena. Do alto da cidade, há enormes antenas que transmitem sinais de TV, celular, rádio e internet. O homem e a mulher que fazem uma experiência espiritual encarnada são semelhantes às antenas e seus componentes complementares. Recebem, interpretam e disseminam sinais. À luz da energia divina, decodificam os traços de luz e sombras da realidade humana. Estão antenados nas grandes questões sociais, culturais e ambientais da atualidade. Procuram perceber o que Deus lhes diz ali. A presença divina se manifesta para eles como apelo, denúncia, indignação e anúncio esperançoso. Cultivam uma espiritualidade que se alimenta da vida e da Bíblia. No cotidiano, não há respostas prontas, nem raios que vêm do céu de forma estrondosa. O pára-raio é importante, para evitar que as antenas se queimem. Mas o núcleo da experiência religiosa não reside no seu caráter milagroso. E sim, em ser sinal de vida e esperança.
Por fim, vejo na grande cidade alguns terraços no último andar. Ali as pessoas se encontram, comem, bebem e festejam. Imagino que a espiritualidade é também o espaço do encontro de pessoas, que se fortalecem na fé. Jesus gostava de fazer festa. Acolhia as crianças e chamava a participar da mesa várias categorias de gente excluída no seu tempo: as mulheres, os pobres, os pecadores, os doentes. O encontro com Deus promove o encontro com os seres humanos. E nesta mesa da irmandade também participam todas as criaturas. É a festa da sustentabilidade. Aqui ressoa a palavra de Jesus: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

sábado, 2 de agosto de 2008

Dignidade para as crianças


Outro dia, estive em Itaquera, na periferia de São Paulo. Fui conversar com as educadoras de uma creche que atende crianças de zero a três anos. A instituição é coordenada pelos Irmãos Maristas, em convênio com a prefeitura da capital paulista. Recebe crianças pobres da Zona Leste de São Paulo e está situada a poucos metros do metrô. Assim, as mães da classe popular deixam ali suas crianças de manhã e seguem para trabalhar.
Muita coisa me encheu os olhos e alentou o coração, nesta visita. Em primeiro lugar, a beleza do lugar. Um ambiente bonito, claro, colorido, limpo e bem cuidado. É a primeira condição para reconhecer que os filhos dos pobres são gente e cidadãos com direitos. A seguir, percebi o entusiasmo e o amor das educadoras pelas crianças. E o que mais agradou foi a criatividade da proposta educativa.
Na sala para os bebês não há berços. Em vez de “engaiolá-los”, estimula-se o desenvolvimento sensorial e motoro. Explorar os espaços, conhecer e interagir! Encontrei um cantinho no qual se registravam os progressos de uma criança com deficiência séria de desenvolvimento mental e de aprendizagem. Chegou lá com quase três anos, sem falar e com poucos movimentos. Após alguns meses, a mudança foi notória. Cada pequeno progresso era festejado, com a educadora e os coleguinhas.
Quando se trabalha com o povo em perspectiva cidadã, não se aceita o assistencialismo ou aquela visão paternalista, que considera os pobres como “coitadinhos”. Ao contrário, investe-se para desenvolver ao máximo as potencialidades das pessoas e dos grupos sociais. Gostei de ver um boneco de pano, de um personagem negro! A educadora, também negra, falou que isso é importante para afirmação da identidade cultural dos afro-descendentes.Por fim, na frente de uma sala, na qual estavam colocadas as fotos das crianças num painel em teia, havia um título feliz: “nossos protagonistas!” Oxalá se multipliquem no Brasil iniciativas assim, de educação e promoção da cidadania, em perspectiva libertadora.

O perdão e o osso

Em um curso de teologia para leigos, eu falava sobre o perdão. Em certo momento, uma professora de ensino médio pediu a palavra. Visivelmente emocionada, ela disse: “Gente, eu quero perdoar, mas não dou conta. Tem uma dor muito grande no meio peito”. Seguiu-se um grande silêncio. Então ela continuou: “Não entendo porque a religião manda a gente perdoar, como se fosse a coisa mais fácil do mundo. Passar a borracha numa frase escrita a lápis... O perdão não se conquista assim!”. Concordei com ela. Disse-lhe que o perdão é também um dom de Deus, que a gente cultiva. E os resultados podem ser imediatos, ou não.
No intervalo, ela veio conversar comigo e partilhou um pouco de sua luta para perdoar. “Sei que isso não é cristão, mas eu odeio o meu pai! Lembro-me de quando eu era criança. Muitas vezes, ele chegava em casa bêbado, tarde da noite. Fazia questão de acordar a todos nós com seus gritos. Ameaça minha mãe com uma faca. Era um horror! Meu pai já morreu, mas eu não consigo perdoá-lo”.
Dois anos mais tarde, reencontrei a mesma professora. Com sorriso nos lábios, ela me disse que estava fazendo uma terapia e que, agora sim, havia conseguido perdoar o pai. E o perdão lhe trouxe uma sensação de libertação, de paz interior. Compreendi então que o perdão é um processo. Para uns, pode ser mais rápido. Para outros, exige mais tempo e esforço. Depende da intensidade da experiência, da maturidade humana e da nível espiritual.
Outro dia, devido a um incidente, quebrei o dedo mínimo do pé. O médico ortopedista imobilizou-me o dedo e disse: “Vai precisar de um certo tempo para colar o osso. Ele está na posição certa, mas isso não basta”. Lembrei-me então do processo do perdão. Ele se assemelha a colar um osso quebrado. Sempre há possibilidade para perdoar, pedir perdão e perdoar-se, se o coração humano estiver aberto. Mas é necessário criar as condições e deixar o tempo consolidar a decisão. Neste caminho, o amor de Deus age em nós, eliminando o ódio, o ressentimento, o desejo de vingança. O perdão é uma cura!