Dom Pedro Casaldáliga, ex-bispo da prelazia de São Felix, no Mato Grosso, é um símbolo vivo das pessoas que sonham e se empenham por uma Igreja- comunidade e uma sociedade inclusiva e sustentável. Eu o conheci, faz muitos anos, em Goiânia e o tenho como uma pessoa de referência. Pequeno e frágil fisicamente, Dom Pedro surpreende sempre, ao conjugar a lucidez do profeta com a ternura do poeta, a militância política com a mística. Recentemente, ele respondeu a uma declaração do Cardeal Martini, ex-arcebispo de Milão, homem respeitado em todo o mundo pela sua postura de diálogo e renovação. Martini dizia, decepcionado: “Antes eu sonhava com uma Igreja que percorre seu caminho na pobreza e na humildade, que não depende dos poderes deste mundo; na qual se extirpasse de raiz a desconfiança; que desse espaço às pessoas que pensem com mais amplidão; que desse ânimos, especialmente, àqueles que se sentem pequenos o pecadores. Sonhava com uma Igreja jovem. Hoje não tenho mais esses sonhos”.
Selecionei para você, caro amigo(a), alguns trechos da carta de Casaldáliga. Vale ler e divulgar.
Esta afirmação categórica de Martini não pode ser uma declaração de fracasso, de decepção eclesial, de renúncia à utopia. Martini continua sonhando nada menos que com o Reino, que é a utopia das utopias, um sonho do próprio Deus. Ele e milhões de pessoas na Igreja sonhamos com a «outra Igreja possível», ao serviço do «outro Mundo possível».
Tanto na Igreja (na Igreja de Jesus que são várias Igrejas) como na Sociedade (que são vários povos, várias culturas, vários processos históricos) hoje mais do que nunca devemos radicalizar na procura da justiça e da paz, da dignidade humana e da igualdade na alteridade, do verdadeiro progresso dentro da ecologia profunda. E, como diz Bobbio, «é preciso instalar a liberdade no coração mesmo da igualdade»; hoje com uma visão e uma ação estritamente mundiais. É a outra globalização, a que reivindicam nossos pensadores, nossos militantes, nossos mártires, nossos famintos...
Poucos dias antes da clausura do Concílio Vaticano II, 40 Padres Conciliares celebraram a Eucaristia nas catacumbas romanas de Domitila, e firmaram o Pacto das Catacumbas. Dom Hélder Câmara era um dos principais animadores do grupo profético. O Pacto em seus 13 pontos insiste na pobreza evangélica da Igreja, sem títulos honoríficos, sem privilégios e sem ostentações mundanas; insiste na colegialidade e na corresponsabilidade da Igreja como Povo de Deus e na abertura ao mundo e na acolhida fraterna.
Hoje, nós, na convulsa conjuntura atual, professamos a vigência de muitos sonhos, sociais, políticos, eclesiais, aos quais de jeito nenhum modo podemos renunciar. Seguimos rechaçando o capitalismo neoliberal, o neoimperialismo do dinheiro e das armas, uma economia de mercado e de consumismo que sepulta na pobreza e na fome a uma grande maioria da Humanidade. E seguiremos rechaçando toda discriminação por motivos de gênero, de cultura, de raça. Exigimos a transformação substancial dos organismos mundiais (a ONU, o FMI, o Banco Mundial, a OMC...). Comprometemo-nos a vivermos uma «ecologia profunda e integral», propiciando uma política agrária-agrícola alternativa à política depredadora do latifúndio, da monocultura, do agrotóxico. Participaremos nas transformações sociais, políticas e econômicas, para uma democracia de «alta intensidade».
Como Igreja queremos viver, à luz do Evangelho, a paixão obsessiva de Jesus, o Reino. Queremos ser Igreja da opção pelos pobres, comunidade ecumênica e macroecumênica também. O Deus em quem acreditamos, o Abbá de Jesus, não pode ser de jeito nenhum causa de fundamentalismos, de exclusões, de inclusões absorventes, de orgulho proselitista. (..) O diálogo interreligioso não somente é possível, é necessário. Faremos da corresponsabilidade eclesial a expressão legítima de uma fé adulta. Exigiremos, corrigindo séculos de descriminação, a plena igualdade da mulher na vida e nos ministérios da Igreja. Estimularemos a liberdade e o serviço reconhecido de nossos teólogos e teólogas. A Igreja será uma rede de comunidades orantes, servidoras, proféticas, testemunhas da Boa Nova: uma Boa Nova de vida, de liberdade, de comunhão feliz. Uma Boa Nova de misericórdia, de acolhida, de perdão, de ternura, samaritana à beira de todos os caminhos da Humanidade.
A Igreja se comprometerá, sem medo, sem evasões, com as grandes causas de justiça e da paz, dos direitos humanos e da igualdade reconhecida de todos os povos. Será profecia de anuncio, de denúncia, de consolação. A política vivida por todos os cristãos e cristãs será aquela «expressão mais alta do amor fraterno» (Pio XI).
Nós nos negamos a renunciar a estes sonhos mesmo quando possam parecer quimera. «Ainda cantamos, ainda sonhamos». Nós nos atemos à palavra de Jesus: «Fogo vim trazer à Terra; e que mais posso querer senão que arda» (Lc 12,49). Com humildade e coragem, no seguimento de Jesus, tentaremos viver estes sonhos no dia a dia de nossas vidas. Seguirá havendo crises e a Humanidade, com suas religiões e suas Igrejas, seguirá sendo santa e pecadora. Mas não faltarão as campanhas universais de solidariedade, os Foros Sociais, as Vias Campesinas, os movimentos populares, as conquistas dos Sem Terra, os pactos ecológicos, os caminhos alternativos da Nossa América, as Comunidades Eclesiais de Base, os processos de reconciliação entre o Shalom e o Salam, as vitórias indígenas e afro y, em todo o caso, mais uma vez e sempre, «eu me atenho ao dito: a Esperança».
Cada um e cada uma a quem possa chegar esta circular fraterna, em comunhão de fé religiosa ou de paixão humana, receba um abraço do tamanho destes sonhos. Os velhos ainda temos visões, diz a Bíblia (Jl 3,1) (..) Seguimos Reino adentro.
3 comentários:
Dom Pedro ainda será chamado um dia de São Pedro do Araguaia...
Gosto muito dele, ele me transmite uma paz muito grande.
Professor, se não for pedir de mais, visite meu blog e deixa a sua opinião, critica ou sugestão.
www.blogdalibertacao.blogspot.com
Claro que "os velhos ainda tem visões" como diz Dom Pedro. Oxalá tivessemos mais gente assim.
Nosso mundo precisa muito desta profecia, militancia, ternura e poesia de Casaldaliga não é mesmo Murad?
Gostei muito da memória.
Um abraço,
Fernanda Priscila
Também sonho com um mundo do jeito de Jesus de Nazaré. Também sonho com uma Igreja menos clerical, preconceituosa, menos absolutista nas decisoes, menos monárquica e mais evangélica. Sonho com a Igreja das Catacumbas, comprometida somente com o Reino e nada mais. E a partir do Reino ver o ser humano brilhar com toda sua riqueza e beleza. Sonho com uma Igreja não atrelada ao poder, descentralizada, menos hierarquica e mais democrática. Aquela Igreja guiada não pelo poder, mas pelo serviço próprio do Evangelho. Sonho com uma Igreja que respeite o papel das mulheres, menos preconceituosa, mais profética e comprometida com a causa dos pequenos que é o maior tesouro do Reino. Mas enquanto tivermos figuras que lutam pelo poder e pela promoção pessoal, obstruiremos a grande utopia de Jesus: o Reino.
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