quarta-feira, 30 de junho de 2010

Obras apostólicas. Com os olhos fixos em que?

Nos últimos anos, a Vida Religiosa experimentou mudanças significativas no tocante às “obras”, ou seja, instituições complexas criadas para traduzir o carisma, tais como: escolas, hospitais, obras sociais (creches, orfanatos e asilos), meios de comunicação e casas de retiro. O que aconteceu? Como enfrentar estas transformações no âmbito das obras, na sociedade plural? O fato leva as pessoas a dirigirem o olhar em várias direções. Algumas se fixam no passado, em atitude de nostalgia. Outras permanecem perplexas, com o olhar perdido. Por fim, há quem se põe a caminho, olhando para frente, e ensaia soluções.

O olhar retrospectivo
No passado, as obras tinham finalidades claras e inquestionáveis, tais como: (1) anunciar Jesus Cristo e ensinar a doutrina cristã, (2) exercitar a caridade, prestando assistência aos pobres e necessitados, (3) ajudar a formar cidadãos imbuídos da fé cristã, (4) garantir a sobrevivência dos religiosos(as) e de seus Institutos.
A gestão das obras era feita de forma caseira e amadora. Nem era preciso ser diferente, pois muitas outras coisas na sociedade aconteciam de maneira semelhante. Os religiosos(as) exerciam o máximo de funções nas obras: operacionais, de execução direta e de coordenação. Leigos e leigas tinham o mínimo possível de participação. Somente em caso de suplência e em algumas funções operacionais se recorria aos “de fora”.
Como o Estado não podia arcar com determinados serviços à população, delegava tarefas às congregações religiosas, em troca de algumas concessões. As obras tinham grande reconhecimento social e eclesial. O padre e o prefeito se orgulhavam em ter uma escola e um hospital católicos na sua cidade. Assim, criou-se a imagem de que as instituições católicas dos consagrados eram consistentes, sólidas e confiáveis. E a imagem correspondia à realidade dos fatos.
Do ponto de vista interno, as obras eram percebidas como a tradução perfeita do desejo dos fundadores(as). As comunidades religiosas habitavam dentro da obra, por vezes separadas por uma porta ou um corredor. Eram milícias a serviço das obras. O horário e o ritmo de vida das comunidades religiosas eram moldados a partir das exigências de suas obras.

Novos desafios
Nas últimas décadas, este quadro se alterou substancialmente. A força da tradição e as glórias do passado são insuficientes para manter as obras. Em todas as áreas onde antes atuavam unicamente instituições religiosas, entraram outros atores sociais. No campo de instituições de ensino, hospitais e comunicação chegaram poderosos concorrentes, com notório diferencial competitivo. Eles trouxeram o conceito comercial de “criar valor”.
Nas organizações antigas, importa manter as práticas e rotinas que deram certo no passado. Por isso, a inovação é vista com certa desconfiança. A instituição age de forma reativa. Somente realiza mudanças quando de se vê forçada a isso, a partir de uma provocação externa. Ora, seus concorrentes, ao contrário, são proativos e empreendedores.
Além disso, na mentalidade que rege as obras tradicionais, dá-se muita importância ao patrimônio material: terrenos, prédios, salas, mobiliários e, em menor grau, novos equipamentos. Ora, numa visão contemporânea de gestão, estas coisas somente contam se efetivamente geram resultados, de acordo com a missão da organização e a demanda de seu público-alvo. Caso contrário, constituirão custos, devido à constante depreciação, exigência de manutenção e de atualização.
A finalidade evangelizadora das obras entrou em crise e exige uma mudança de perspectiva, na medida em que a sociedade contemporânea se tornou plural também no âmbito religioso. Muitos profissionais da educação, da saúde e da área social que trabalham em instituições religiosas apresentam experiências religiosas e convicções que não se enquadram no perfil católico padrão. Qualquer espaço confessional, mantendo sua identidade, deve respeitar as crenças de seus colaboradores e interlocutores. E ainda há o desafio de evangelizar, como “boa nova significativa”, considerando a diversidade religiosa dos destinatários.

As obras mantidas por religiosos(as), inclusive as filantrópicas, vivem uma situação desafiadora. Com a expansão da sociedade urbana, aumentam as exigências de profissionalismo, simultaneamente em várias áreas: a específica de sua missão, a contábil, a administrativa, a financeira, a patrimonial, a de suprimentos, a de legislação e a de marketing. A busca de qualidade se torna um imperativo. Mas, por inércia, elas mantém características de gestão caseira e amadora. As decisões são tomadas sem um estudo sério sobre os elementos envolvidos. Além disso, deve-se lidar com uma questão delicada: toda instituição privada de prestação de serviços (como escola, hospital ou editora) é também um negócio. Seu público-alvo não somente é um potencial destinatário da evangelização, mas também sua clientela. E, como cliente, paga para receber determinado serviço, em crescente nível de exigência. A partir desta relação profissional e “comercial”, se estabelece uma teia de relações e de papéis correspondentes. Toda instituição do mercado precisa de equipe qualificada, constituída por gestores, técnicos, executores e grupo operacional. Deve manter com sua clientela uma relação estreita, visando satisfação e fidelização. Recorre a fornecedores adequados, que lhes vendem os insumos necessários. Enfrenta muitos concorrentes. Assume um posicionamento no mercado (perfil do produto e segmento). E, por fim, precisa cuidar da imagem e das relações com o público externo. Quanto trabalho e esforço!
As exigências de qualidade e profissionalismo também chegaram à área social. Quem atua hoje em projetos sócio-educativos não carrega o peso da gestão de um negócio, mas precisa desenvolver várias competências. Deve conhecer, com muitos olhares, seus interlocutores e compreender os múltiplos fatores que influenciam a vida dos pobres. Devido à necessidade de recursos e ao estabelecimento de parcerias, requer-se habilidade teórico-prática para elaborar, avaliar e aperfeiçoar projetos. Deve-se conhecer as políticas públicas e atuar decididamente nos organismos da sociedade civil, para garantir conquistas cidadãs. Uma equipe que atua em instituições sociais também precisa aprender a lidar com questões básicas de comunicação e marketing, contabilidade, legislação trabalhista e de voluntariado, planilha de custos, etc. Atua decididamente em redes com instituições similares, visando fortalecer a sociedade civil. E, além de tudo, desenvolve a criatividade, de forma a estimular o crescente protagonismo dos pobres. Quem diz que “é mais fácil trabalhar com os pobres”, está enganado. Há muitas demandas!

Instituições inovadoras e contemporaneidade
Pesquisadores da ciência da gestão, como Bateman e Snell, apontam algumas características básicas das organizações que crescem na sociedade atual, sejam filantrópicas ou empresariais. Elas teriam no mínimo os seguintes traços predominantes: conectividade, inovação, qualidade e velocidade.
Conectividade: instituições atualizadas captam e interpretam as tendências significativas da cultura contemporânea e as relacionam com seu público-alvo. Percebem as oportunidades inauditas e se sentem desafiadas por eles. E como as soluções são difíceis, a conectividade leva a estabelecer amplas redes de parcerias e alianças estratégicas. Hoje é impossível avançar sozinho(a).
Inovação: consiste em introduzir novos serviços ou produtos, antecipando-se para responder às demandas explícitas ou implícitas da sociedade. A inovação é o meio mais poderoso para crescer. Exige-se uma organização criativa, que invista em pesquisa e desenvolvimento e cultive a gestão do conhecimento. Um grupo inovador ousa arriscar, aprende rapidamente de quem faz bem; aperfeiçoa e recria o que aprendeu. E, sobretudo, cria as condições para colocar em prática os projetos inovadores.
Qualidade: diz respeito à excelência do serviço prestado, qualquer que seja seu público-alvo ou interlocutor. Um grupo organizado, que tem razão de ser e de atuar (missão), busca aperfeiçoamento contínuo naquilo que lhe é próprio. Isso vale tanto para uma associação popular, quanto para um grupo religioso ou uma empresa. Certamente, a qualidade está condicionada à infraestrutura disponível, aos recursos e à qualificação das pessoas que atuam na instituição. E a grande novidade reside nos grupos que conseguem dar saltos de qualidade, recorrendo à imaginação e à criatividade, com poucos recursos. Maximizam a relação custo x benefício.
Velocidade: Como o tempo atual está acelerado, exige-se das instituições que sejam rápidas para responder às demandas e necessidades de seu público-alvo e da sociedade. Aquela que demora a chegar, é preterida. Quem começa logo, tem o ônus do risco e o bônus de um diferencial competitivo.

Basta pensar nestas características e olhar para as obras das Congregações religiosas, para constatar que, na média geral, elas estão bem aquém do necessário. O grau de inovação é pequeno e se investe pouco em Pesquisa e Desenvolvimento. O saber operativo, que devia circular livremente e gerar novos conhecimentos, permanece represado devido à luta pelo poder e a uma mentalidade restritiva de “províncias” e “circunscrições”, dentro da mesma família religiosa. A lentidão e a baixa conectividade marcam sua cultura institucional.
Felizmente, há também fatores positivos. Várias províncias e Institutos buscam qualidade no serviço das obras, com perspectiva humanizadora, ao mesmo tempo que têm uma postura crítica em relação ao mercado. Crescem as redes, parcerias e alianças estratégicas entre congregações religiosas e outras organizações da sociedade civil. Com isso, estimula-se o aumento de conectividade. Aumenta-se o profissionalismo na gestão das organizações, sem perder o carisma. E sempre há riscos em manter o equilíbrio entre dimensões díspares e conflituosas.

Obras e carisma
Para alguns, a crise das obras se resolve à medida que a instituição religiosa se moderniza, assume feições profissionais, ganha visibilidade, fortalece sua identidade e imagem, fecha obras deficitárias, assume novas obras em contextos economicamente mais viáveis, melhora os procedimentos internos, aperfeiçoa os mecanismos de controle, assume uma visão estratégica voltada para o futuro, estabelece metas com indicadores e se lança em processo de aperfeiçoamento contínuo. Ora, tudo isso (e outras coisas mais) faz parte do processo de gestão das obras, mas é insuficiente, se não se leva em conta o componente do carisma e da espiritualidade.
As instituições de prestação de serviços dos religiosos, como escolas, hospitais e editoras, não nasceram para ser uma empresa a mais no mercado. Elas surgiram com a finalidade de evangelizar e promover o ser humano, em resposta a um apelo do Espírito, captado e interpretado pelos fundadores(as) como tal. Ao mesmo tempo, elas representavam um exercício de laicidade da vida consagrada, de estar no mundo de uma forma própria, trabalhando e garantindo seu sustento material. Os consagrados(as) não são anjos. Precisam de meios para sobreviver e ampliar sua missão.
Constata-se ainda que determinadas obras estão muito distantes das intuições básicas do fundador(a). Então, não basta que elas tenham sucesso e sejam bem geridas. Para a vitalidade do Instituto, necessitam estar alinhadas ao carisma fundacional, lido à luz dos Sinais dos Tempos. Não se trata de copiar o que fundador fez, pois as condições históricas mudaram. Mas é preciso se perguntar, o que ele(a) faria hoje, se estivesse começando sua empreitada? Quais seriam seus destinatários, e em que sentido inovaria na missão? O que escolheria visando o sustento material, o que promoveria de forma gratuita, não visando lucro...
Muitos Institutos nasceram para atender aos mais pobres e necessitados. Tal questão salta aos olhos, quando se folheia a vida dos fundadores ou se lê as Constituições. É verdade que o pluralismo contemporâneo favorece a adoção de um leque amplo de obras, destinados a diferentes públicos: ricos e pobres, gente da cidade e do campo, escola e obras sociais, hospitais e experiências de saúde popular, educação privada e obras conveniadas com o poder público. Mas cada Instituto deve privilegiar algumas presenças que sinalizam de forma clara a prioridade do carisma fundacional, mesmo que mantenha algumas obras tradicionais. Para isso, é preciso superar o apego às obras. Elas são expressões históricas do carisma. E como tal, precisam ser revisitadas e revistas.
Deve-se afirmar sem medo que a vitalidade do carisma vai além das obras. Em muitos casos, será necessário constituir comunidades religiosas sem obras, atuando junto aos pobres em cidades pequenas, aldeamentos indígenas, periferias das metrópoles, comunidades terapêuticas, população de rua, etc. Hoje há certo consenso a respeito da pluralidade das presenças apostólicas, contemplando não somente as obras institucionais, mas também outras iniciativas, como as comunidades inseridas e outros projetos “nas fronteiras”. Mas, na hora de tomar as decisões, o peso da história já construída é maior...

Para um “discernimento das obras”
A grande parte dos Institutos apresenta o mesmo quadro preocupante: aumento lento e irreversível da média de idade, número de novas vocações menor do que a soma de mortes e saídas. Esta conjugação de fatores tem um efeito multiplicador. Hoje há províncias religiosas no qual o número de obras é inadequado para a quantidade de pessoas que estão na vida ativa. E algumas obras são deficitárias do ponto de vista econômico e caminham para o fechamento. Outras exigem uma vultuosa quantia para atualização, no que diz respeito a prédios, equipamentos, tecnologia e formação de pessoas. E outras ainda, do ponto de vista social e pastoral, perderam parte do vigor original.
Ainda é tempo de mudança! Ela deve realizada enquanto as pessoas tem energia vital e disposição para arcar com os riscos. Se isso não acontecer, a atual vida consagrada caminhará para a morte. Uma morte lenta, muito lenta e inexorável. Tal situação já é perceptível da Europa...
A reestruturação das obras faz parte do processo de renovação da Vida Religiosa. Porém, renovar a Vida Consagrada trata-se de algo mais profundo do que fechar, redirecionar ou abrir obras. Toca na espiritualidade, na forma de orar, nas relações fraternas e sororais, na missão, na vivência da consagração. Todos esses elementos juntos configuram o grau de atratividade da Vida Religiosa. Ou seja: o que ela significa e transmite para a Igreja e a sociedade, o que ela pode atrair as novas gerações.
A reestruturação das obras inclui um longo processo, com vários elementos. Citaremos brevemente alguns deles.
*Análise da situação da província ou Instituto, contemplando o número efetivo de consagrados(as) na ativa, tipo de obras existentes, relação das obras com o carisma, número e tipo de comunidades religiosas, média de faixa etária, etc.. Esta análise complexa deve contar com assessoria externa, com a colaboração de profissionais leigos, de quem tem o olhar da Vida Consagrada, além de levar em contar a contribuição das comunidades religiosas.
*Processo de discernimento das obras: quais devem ser fechadas, quais serão revitalizadas, que novas iniciativas serão tomadas.
*Formação de leigos(as) para a gestão das obras.
*Preparação profissional de alguns consagrados(as) para gestão de obras.

Alguns institutos religiosos já promoveram processos de reestruturação de obras. Como é inevitável, houve acertos e erros. Essa experiência deve ser partilhada com outros, que estão iniciando agora. Importa colocar-se a caminho, em busca de fidelidade criativa ou da criatividade fiel. Com os olhos fixos em Jesus e no futuro. Peregrinos(as) e aprendizes!

Ir. Afonso Murad
Publicado originalmente no Caderno preparatório para a Assembléia Geral da CRB, julho de 2010.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Teologia da Graça: questões para estudar

Termino na próxima semana o curso de Antropologia Teológica, no ISTA. Gostei muito de trabalhar com o tema "criação", "graça" e "salvação", relacionandno-os o conjunto da teologia e da existência cristã. A turma se envolveu muito, com bom humor e desejo de aprender.
Partilho com os alunos as questões da avaliação, para que preparem com antecedência. Para quem não acompanhou o curso, um aviso: não se espante com a densidade e complexidade das perguntas!
Para os aprendizes de teologia, desejo bom exercício de discutir, pensar e refletir sobre a fé.
Questões:

1. Em que sentido dizemos que “a salvação nos vem pelo nascimento, pela vida, pela morte e pela ressurreição de Jesus”? O que é especificamente salvador em cada etapa?
2. Conceitue o que é “graça” e “salvação”, recorrendo a alguns textos da bíblia e analogias da existência humana.
3. Tema: relação natureza x graça. Mostre como apareceu a expressão “sobrenatural”, o consequente extrinsecismo e suas conseqüências para a vida cristã. Por fim, como se resolveu esta questão, com a ajuda da teologia de K. Rahner.
4. Tema: “predestinação”. Mostre sua origem e o contexto na bíblia. Como foi interpretada por Agostinho e Calvino? Como responder a esta questão hoje?
5. Tema: relação entre Graça e Liberdade. Explique a origem da polêmica pelagiana. Mostre como a Igreja respondeu a este desafio na história. Por fim, como hoje se explica a relação entre Liberdade Profunda e Graça.
6. Mostre como surgiu o tema da “Justificação pela fé”, em Lutero. Apresente a resposta de Trento e o consenso entre a Igreja católica e a luterana. O que significa “justificação objetiva e subjetiva” e a atualidade desta questão.
7. Explique: “a prática do amor solidário, a luta pela justiça social e pela sustentabilidade ecológica são expressões privilegiadas da graça divina acontecendo na vida humana”.
8. Como articular corretamente a afirmação sobre a “salvação em Cristo” com o valor salvífico das outras religiões?
9. Em que sentido pode-se afirmar que alguém faz uma “experiência de Deus”? Até que ponto um cristão pode sustentar a certeza de que “está salvo”?
10. O que o curso acrescentou à sua vida cristã? E à sua prática pastoral?

terça-feira, 15 de junho de 2010

Martírio e luta pela justiça

“Vi uma grande multidão que ninguém podia contar. Estavam todos diante do trono e do Cordeiro. Vestiam vestes brancas e traziam palmas na mão (..) Quem são e de onde vieram esses que estão vestidos com roupas brancas? (..) São os que estão chegando da grande tribulação. Eles lavaram e alvejaram suas roupas no sangue do cordeiro” (Ap 6,9.14)

Compreendi este texto, de forma original, quando visitei a casa onde morou Dom Oscar Romero, bispo de San Salvador, assassinado por um atirador de elite, a serviço do governo militar que dominava o país. Lá se vê sua camisa branca, perfurada pela bala, e manchada de sangue. Romero era um homem do bem. Começou sua missão de bispo de forma ingênua. À medida que conheceu mais a dura realidade de seu povo, cresceu dentro de si a indignação e a consciência que a fé cristã não dizia respeito somente aos indivíduos e às suas questões existenciais. Romero percebeu os mecanismos sociais que geravam a pobreza e a dominação política. Compreendeu o jogo das ideologias. Meteu-se na luta política como homem de Deus, buscando o diálogo e os consensos possíveis. Nas homilias de Romero, gravadas e transmitidas pelo rádio, transparecem um senso profético impressionante. Não são um mero discurso político ou de conselhos piedosos sem sabor. E sim palavras apaixonadas e lúcidas, críticas e esperançadas, contextualizadas e com teor espiritual e ético.

No final da década de setenta, conheci Elói Ferreira da Silva. Homem simples, da roça, líder de círculo bíblico na cidade de São Francisco, no Norte de Minas. Vivia com a mulher e dez filhos, como posseiro em terras devolutas. Tornou-se um representante das lutas populares da região. Impressionava-me sua serenidade, alegria, e muita fé em Deus. Ele via os fatos cotidianos e também sua luta social com aquele olhar de quem crê, confia e espera no Senhor. Mas não estava parado, esperando as coisas acontecerem. Empenhou-se com seus companheiros na luta pela posse da terra, grande dom de Deus para seus filhos, como dizia ele. Seu Elói foi barbaramente assassinado, a mando dos que almejam se apropriar da área para cultivar eucalipto. Passados tantos anos, ainda me recordo de seu sorriso aberto, mesclado com o imenso bigode.

Como Dom Romero e Elói, milhares de homens e mulheres nos últimos anos deram a vida pela causa da justiça e do Evangelho na América Latina e no Caribe.
Uma das feições originais do cristianismo latino-americanos dos últimos anos consiste em recuperar a dimensão social da fé. Presente fortemente no livro do Deuteronômio, nos livros proféticos, em vários Salmos e nos evangelhos sinóticos, a dimensão social da fé se diluiu nos primeiros séculos e praticamente perdeu relevância, quando a Igreja se tornou religião do império romano.
Sempre houve mártires na Igreja, no correr da história, embora com diferente intensidade. Nos últimos séculos, o martírio assumiu uma face predominantemente confessional, como defesa de uma religião até a morte heróica. No nosso continente, a esmagadora maioria dos mártires e testemunhas de vida cristã, canonizadas ou não, associou à sua causa religiosa um ideal humanitário, social e ecológico. Não se apresentam como mártires de uma determinada religião, e sim como símbolos de uma nova humanidade possível, para além das fronteiras culturais, étnicas e religiosas. Esses mártires são reconhecidos por todos aqueles que vivem irmanados nas mesmas causas, mesmo que com diferentes olhares e perspectivas. Símbolos vivos de um sonho ainda não realizado, mas necessário. Encontro da graça divina com a resposta humana. Convergência do apelo libertador de Deus, com o engajamento pessoal, comunitário e estrutural.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

O que é a cultura light?

É possível formar para compromissos duradouroas, numa cultura light? Em que condições e com qual grau de certeza? Que atitudes e estruturas são necessárias para isso acontecer? Estas perguntas são decisivas para a educação e a evangelização. Vamos começar caracterizando a cultura light. No próximo artigo, mostraremos que elementos favorecem o desenvolvimento do homem e da mulher light. Por fim, traçaremos algumas pistas para responder à questão inicial.

A cultura “light”
A rigor, não existe uma cultura “light”, enquanto sistema elaborado de significações, configurado por um grupo humano e identificável a partir de matrizes étnicas, sociais, de gênero ou geracional. O termo “light” serve mais como uma categoria, uma aproximação conceitual. Ele dá conta de explicar uma forma de conceber o mundo e de se comportar, que está presente em diferentes grupos na sociedade contemporânea, com intensidade também distinta. A expressão “light” é uma imagem, uma analogia, que reúne algumas características do que se convencionou chamar de cultura “pós-moderna” ou “modernidade líquida” (Zygmunt Bauman). A expressão remonta a um famoso livro de Henrique Rojas, denominado El hombre light (Ed Temas de Hoy, Madrid, 1992) atualmente na 20 edição.
“Light” tem, em inglês, muitos sentidos. O primeiro é o substantivo “luz”. Daí deriva o adjetivo que significa “claro”, como por exemplo, “light blue” (azul claro). O termo ganhou importância e novo significado na sociedade atual devido à associação com alimentos de baixo teor calórico. Basta entrar no supermercado ou na padaria, para encontrar vários produtos “light”. Eles apresentam, no mínimo, a redução de 25% de determinado nutriente que fornece energia (carboidrato, gordura e proteína), em comparação com o alimento convencional. O “diet”, por sua vez, diz respeito a alimentos e bebidas completamente sem açúcar ou gordura, originalmente destinados a quem tem alguma limitação na saúde, como diabete ou colesterol elevado. As pessoas consomem cada vez mais produtos “lights” e “diets”, para manter o peso, não engordar e conservar o padrão estético que se determinou como ideal. Alimentam a ilusão de que podem comer e beber à vontade, fruir do prazer (sabores e odores), sem pagar o preço de engordar. Soa como uma solução mágica!

A partir desta referência, no imaginário atual “light” se associa a “leveza”, não somente física, mas também psicológica e comportamental. Uma pessoa light rejeitaria a rigidez, ou seja, aquilo que é duro (hard) e pesado (heavy). Ela estaria no âmbito do que é seguro, sem riscos.
Segundo Wilmar L. Barth, no homem light, “tudo está sem calorias, sem gosto ou interesse. A essência das coisas não importa, só é quente o superficial, e a vida pode ser comparada a um coquetel, onde tudo pode ser experimentado, mas tudo está desvalorizado. Centrado em aproveitar bem o momento e consumir, em se interessar por tudo e, ao mesmo tempo, por não se comprometer com nada, o homem light ajeita tudo. Para ele, tudo é transitório, passageiro e assim até a democracia e a vida conjugal se tornam lights. O lema é não exigir muito e alcançar uma tolerância absoluta. Não existem desafios, nem metas históricas e grandes ideais, nem um esforço ou luta contra si próprio (..) Como não tem critérios sólidos, o homem light é superficial e aceita tudo. Geralmente não tem um projeto de vida e lhe interessa possuir e consumir loucamente”. Fabrica sua verdade de acordo com preferências pessoais, escolhendo o que gosta e rejeitando o que não lhe apetece.
E conclui o autor, a respeito do homem e da mulher light: “sua ideologia é o pragmatismo. Sua norma de conduta é a vigência social, as vantagens que leva, o que está na moda (..) Tudo é suave, ligeiro, sem riscos; somente faz algo com garantia. Em sua vida, não há rebeliões, pois a moral se converteu numa ética de regras de urbanidade ou mera atitude estética” (W. Barth, O homem pós-moderno, religião e ética, in: Teocomunicação, v.37, n.155, março 2007, p. 91s).

Cecília Benetrix resume assim as características do “homem light”, a partir de E. Rojas: “Es esa persona que carece de esencia, que es consumista, relativista pues es un hombre sin referentes, sin puntos de apoyo, envilecido, rebajado, convertido en un ser libre que se mueve pero no sabe a dónde va, un hombre que es veleta. Es vacío, y vive em la era del vacío, lo único que le interesa es su ascenso social y el placer a toda costa, su fin es despertar admiración o envidia. Adquiere gran cantidad de información que le venden los médios pero no es capaz de hacer una síntesis de aquello que percibe y en consecuencia se há ido convertiendo en un sujeto trivial que acepta todo y es muy manejable. Posee uma decadencia moral debido al hedonismo (placer sobre todo) y a la permisividad. Gracias a estos dos conceptos el hombre light se evade a si mismo y se sumerge en las sensaciones más sofisticadas contemplando la vida como um goce ilimitado”.

Para evitar análises pessimistas, é importante ressaltar alguns traços da cultura light na sua origem. Eles são ambivalentes, e talvez o problema seja a forma unilateral como se manifestam. Há um contexto que lhes deu origem e favorece sua manifestação. Por exemplo, na sociedade contemporânea, a luta pela sobrevivência devora grande parte da energia vital das pessoas. Cada vez mais, não se tem segurança a respeito do futuro profissional. O ambiente de trabalho, devido ao clima de constante competição no mercado, é tão estressante e exigente, que, como forma de compensação e alívio, as pessoas tendem a sonhar com a situação oposta, na qual possam provar a leveza, a ausência de cobranças, a fruição e o prazer. Mesmo que isso não seja real para a grande maioria, permanece como desejo e ideal.
Outro fato elucidativo: na sociedade midiática, da imagem e da simulação, só existe o que aparece. O estético saiu das Igrejas antigas, dos museus e das galerias de arte e invadiu o cotidiano. E isto é bom, pois significou uma forma de democratização. É compreensível que as pessoas estejam mais sensíveis ao aparente e se extasiem com o belo. A questão é quando o estético substitui o ético. Passa a ser considerado bom aquilo que é produzido, de forma artificial, como beleza, a serviço do consumo.

Valores da cultura light
Com espírito de fé, descobrir-se-á nos “Sinais dos Tempos” do homem e da mulher light não somente as ameaças, mas também as oportunidades para a humanização e o Reino de Deus. Isso exigirá, ao menos, uma disposição das pessoas para avaliar seus hábitos e posturas, investir no autoconhecimento e querer crescer.
Que valores estão implícitos na cultura light, e poderão ser positivos, se forem desenvolvidos em perspectiva humanizadora e comunitária, ou seja, voltados para a evolução da humanidade e compreendidos de forma coletiva, para além do indivíduo? Citemos alguns.
*Leveza: consiste em cultivar a gratuidade, a alegria, o contentamento, e o senso de humor, como elementos decisivos da vida, em contraposição ao pessimismo e ao perfeccionismo. A leveza é um contraponto às exigências demasiadas do mercado, baseado na competição e nos resultados.
*Flexibilidade: a pessoa aprende a relativizar o que antes parecia intocável e inquestionável. Critica a rigidez dos códigos de comportamento, especialmente das religiões tradicionais, e descobre o valor do diálogo.
*Cotidianidade: Há um desejo de simplesmente viver o hoje, sem excesso de preocupação com o futuro.
*Estética: Desenvolve-se a sensibilidade ao belo, em várias instâncias. Desde as embalagens, até o corpo humano, contemplando também o design da casa e da cidade. Abre-se a oportunidade de uma nova síntese entre a bondade e beleza, se a aparência é uma porta de entrada para o ser-que-se-manifesta.
*Corporeidade: o respeito e a valorização do corpo. Critica a violência física contra os fracos, especialmente as crianças e as mulheres. Após séculos de negação, abre-se a possibilidade de uma visão unificadora de corpo-espírito. O corpo é expressão carnal da pessoa e de seu mistério.

No próximo artigo, apontaremos a ambiguidade da "pessoa light" e veremos como ela se manifesta em grupos religiosos.