sábado, 20 de junho de 2009

Frei Prudente Nery: o amigo

Hoje recebi uma notícia triste. Faleceu em Uberlândia (MG), nesta madrugada, Frei Prudente Nery. Perdi um amigo, um grande teólogo e meu orientador espiritual dos últimos anos. E o mundo perdeu um homem iluminado.
Lembro-me de seu bom humor, de suas observações originais e profundas. Com a voz suave, quase sussurrando, falava com o vigor e a liberdade dos profetas bíblicos. Como filho de São Francisco, amava a simplicidade, a vida escondida, a discreção, o ambiente familiar.
Ao mesmo tempo, transitava com facilidade por distintos saberes: a teologia, a filosofia, a psicologia, a antropologia. E nisto residia o prazer daqueles que o ouviam. Prudente jamais se repetia ou caia em “lugar comum”. A ele cabia uma originalidade sem par. A palavra que iluminava, desvelando a presença de Deus no cotidiano, nas buscas humanas. Uma admirável síntese do rigor alemão com a fluida poesia.
Faz algum tempo, Prudente deixou uma meditação sobre a morte. Esta mesma “irmã morte” que pai Francisco recordou ao final do Cântico das Criaturas. Dela seleciono o último parágrafo. Certamente, agora, Prudente experimenta o que poeticamente anteveu.
"Quando chega o inverno no hemisfério norte, sem que ninguém os instrua, os pássaros erguem-se espontaneamente aos céus em incrível aventura. Conduzidos por um misterioso legado de sua espécie, seguindo apenas os pulsos magnéticos da terra, eles voam, pelas trilhas do sol, milhares de quilômetros, noite e dia, à busca apenas de permanecer na vida. Assim há de ser também conosco, quando, no crepúsculo de todos os outonos, cair sobre nós o frio do inverno. Carregados, então, pelo fascinante destino de nossa espécie, nós voaremos, seguindo apenas os acenos da eternidade, rumo à morada da luz, o coração de Deus. E aí saberemos o que, agora, apenas intuímos e, ouvindo Jesus Cristo, o Caminho, a Verdade, a Vida, cremos: Não existem dois reinos, o reino dos mortos e o reino dos vivos, o reino da terra e o reino dos céus, mas apenas o Reino de Deus, que quis que fôssemos eternos".

domingo, 7 de junho de 2009

Trindade: que belo mistério

No “catecismo da doutrina cristã”, que surgiu no século 16, havia uma pergunta assim:
- Quem é Deus?
A resposta correspondente era:
- Deus é o Espírito Perfeitíssimo, criador do Céu e da Terra.
Se olharmos para pinturas antigas nas Igrejas, encontraremos o Deus-patriarcal, representado por um velho barbudo, de cabelos brancos, de vestes alvas.
Bem outra é a percepção de Deus, a partir da Bíblia. As escrituras judaicas, que nós cristãos chamamos de “Antigo Testamento” ou “Primeiro Testamento” nomeiam Deus preferentemente como “Javé”. Esta expressão resume dois lados da figura divina: Ele(a) é “Aquele(a) que é”, simplesmente sem outras definições. Javé também é o Deus que “está do lado do seu povo”. Podíamos resumir assim: transcendência e presença.
Porque Ele(a) é sempre mais do que podemos imaginar ou representar, os judeus prescreveram que não se podia fazer qualquer imagem de Javé. De outro lado, Javé se mostra na caminhada histórica do seu povo como “o libertador”, “o resgatador” (goel), aquele que oferece uma aliança: “Eu serei o seu Deus e vocês serão o meu povo”. Somente mais tarde, no momento de grande crise no exílio, eclode a consciência explícita que Javé é o criador.
Nós, cristãos, herdamos dos judeus uma crença de que o nosso Deus não é uma mera força cósmica impessoal, que garante o eterno ciclo das coisas, e sim o “Deus conosco”, que acompanha a história do seu povo. E, porque é libertador, é também criador. O ato criador, que pode ser compreendido como um imenso processo evolutivo, consiste em organizar o caos, dar sentido, beleza e harmonia à bioesfera. E Deus prepara o ser humano para ser o “jardineiro da criação”, cuidar dela, tirar o necessário para seu sustento, dominar e cultivar.
A partir de Jesus de Nazaré, Deus se fez um como nós. Quis viver nossa vida, provar o jeito de ser das criaturas, levar à máxima expressão as possibilidades humanas de fazer o bem.
Ao final de sua missão, o próprio Jesus promete aos seus discípulos que lhes enviaria o Espírito Santo. Na visão do evangelista João, o Espírito é chamado de Paráclito, palavra grega que sintetiza muitos papéis: advogado, defensor, intercessor, representante... Na expressão de Lucas, o Espírito é o sopro e o fogo divino, presente em Jesus de Nazaré, que é derramado nos seus seguidores. Para Paulo, o Espírito clama em nós, como a força do Ressuscitado.
Assim provamos Deus, como Aquele(a) que simultaneamente é:
- antes de nós (preparando o cosmo e a história, oferecendo a possibilidade de processos de libertação e de aliança),
- conosco (no caminho do deserto, na vida de Jesus de Nazaré)
- e em nós (pelo Espírito Santo), abrindo caminho para o futuro.
Nos primeiros séculos do cristianismo, houve muita polêmica e discussão, até chegar ao consenso de que o nosso Deus é um só, em três pessoas divinas. Não se trata de um “mistério lógico”, de um enigma a resolver, e sim de um “poema inesgotável”: quanto mais se conhece, mais possibilidades se abrem...
Em Deus, a diferença não cria divisão. E a unidade não descamba em individualismo. Bela lição para o ser humano... No momento em que a humanidade valoriza as diferenças de culturas e etnias, de gerações, de gênero (homem-mulher) e de identidades sexuais, voltamo-nos para a Trindade como figura inspiradora. Deus mesmo é unidade na diferença, comunidade construída continuamente no amor que circula e se extravasa.
Quando se descobre que a biodiversidade é o fundamento da força dos ecossistemas, que o diverso possibilita múltiplas relações de cooperação entre os seres, voltamo-nos novamente para o Deus tri-uno. Pois na comunidade trinitária “somos, nos movemos e existimos”.Que belo mistério, este de Deus!

Imagem: Santíssima Trindade- Marcos Lara- artista gráfico
Nanquim s/ Papel

domingo, 31 de maio de 2009

Pentecostes: descobertas do Espírito

Na minha vida, posso identificar três grandes descobertas sobre o Espírito Santo.

A primeira aconteceu quando eu era adolescente e morava em Uberaba. Fiz um “retiro de renovação no Espírito”, sob a animação do Padre Haroldo Rahm. Este acontecimento inesperado gerou em mim muitas experiências belas e tatuagens indeléveis. Aprendi a rezar com o coração, a provar a beleza da prece de louvor, da oração em comum e de nutrir-me com o testemunho de vida dos outros. Resumo esta descoberta assim: “O Espírito de Deus habita no coração dos fiéis”. Ele clama em nós, para que o nosso ser caminhe em direção a Deus. Certa vez, quando fui ao um dia de oração, o Ir. Aleixo Maria Autran, de saudosa memória, nos recordou que quando oramos, o Espírito de Deus fala em nós. É como um rio subterrâneo. Quem reza busca a água no poço. Ela já está lá, basta puxá-la com o balde, a cacimba ou a bomba hidráulica.
Várias músicas da renovação carismática traduzem esta forma de provar o Espírito de Deus. Gosto muito de uma que diz: “Renova-me Senhor com teu Espírito, renova-me Senhor. Então eu sentirei teu fogo de amor, aqui no coração, Senhor”.

A descoberta seguinte veio uns tempos depois. Participei do “Concílio de Jovens”, organizado pela comunidade ecumênica de Taizé, em Vitória e posteriormente em Lins. Quando entrei no noviciado, fui atuar nos fins de semana numa periferia de Campinas. Ali conheci de perto a Igreja dos pobres, a teologia da libertação, o início das comunidades da base. Percebi que o Espírito Santo não agia somente no coração de cada pessoa de bem, e sim também em todos aqueles que comunitariamente se empenham para construir uma nova sociedade. Os muitos anos de convivência em comunidades populares na periferia de Montes Claros e Belo Horizonte me possibilitaram conhecer pessoas extraordinárias no meio dos pobres. Lembro-me delas quando recordo da oração de Jesus, que sob a força do Espírito exulta de alegria: “Eu te bendigo, Pai, porque escondestes estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos” (Lc 10,20s). Desde então tenho lutado para ampliar a consciência de adultos e jovens, para mostrar-lhes que a fé comporta necessariamente um compromisso social. É emblemática a música de Zé Vicente, que diz: “Quando o Espírito de Deus soprou, o mundo inteiro se iluminou. A esperança na terra brotou, e um povo novo deu as mãos e caminhou”. Inspirados nos profetas bíblicos e no próprio Jesus, em quem o Espírito de Deus repousa (Lc 4,14.18), fazemos parte dessa grande e pouco visível corrente dos que acreditam num novo projeto de sociedade, suscitado pelo mesmo Espírito, que faz novas todas as coisas (Ap 21,5).

A última descoberta do Espírito, mais recente e igualmente importante, veio da minha participação no movimento ecológico e do que isso estimulou em mim. Certa vez, quando observava a desova de tartarugas marinhas no litoral do Espírito Santo, vi uma voluntária, bióloga, que retirava cuidadosamente as cascas dos ovos para ajudar os filhotes que, por si só, não conseguiram eclodir da areia quente e caminhar para o mar. Alguém lhe perguntou: “Porque você está fazendo isso?”. Ela respondeu, com brilho no olhar: “Estou cuidando da Vida”. Jamais esqueci esta cena. O engajamento nas grandes causas ambientais leva os cristãos a perceber que a ação do Espírito de Deus é bem anterior à constituição de uma religião. No primeiro versículo da bíblia se afirma que “o Espírito de Deus pairava sobre as águas (Gn 1,1)”. O teólogo contemporâneo J. Moltmann afirma no seu livro “Deus na criação”, que o Espírito Santo é a força de Deus que molda a unidade na diversidade, a começar da evolução do cosmos, passando pela biodiversidade e a convivência humana e chegando até o mistério da Trindade. Ampliei então minha percepção sobre algo que eu rezava e cantava muitas vezes: “Envia teu Espírito Senhor, e renova a face da Terra” (Salmo 104,30). O Espírito Santo é também a grande força evolutiva que sustenta e renova a criação. Por isso, cuidar do nosso planeta, frear o processo destrutivo que está em marcha e garantir a sustentabilidade é ouvir um apelo de Deus, cujo Espírito geme nas criaturas (Rm 19,22).

Neste dia de Pentecostes, creio que estas três dimensões do Espírito Santo são fundamentais para viver a fé contemporaneamente: experimentar a Deus na subjetividade, ouvir seu apelo na realidade e sintonizar com Ele em todas as criaturas. Que esta chama divina nos ilumine, nos aqueça e nos encante. Amém!

Texto: Afonso Murad
Gravura: Ir. Anderson,msc

sábado, 16 de maio de 2009

Xapuri e Chico Mendes

Saí de Rio Branco, numa manhã ensolarada. Com mais outros passageiros, lotamos um taxi que faz o trajeto até Xapuri, situada a aproximadamente 170Km da capital do Acre. Estamos em plena região amazônica, em região banhada pelo Rio Acre, afluente do Purus, que deságua no Amazonas. Depois de algumas voltas e muitas paradas - este é o jeito de viajar aqui, pois não se sabe bem nem a hora da partida e muito menos a da chegada – terminamos a viagem em Xapuri. Esta cidade ficou conhecida no mundo devido a Chico Mendes, líder “dos povos da floresta” e ecologista.
Xapuri recebeu este nome de uma tribo indígena da região. Se voltássemos ao tempo uns 120 anos atrás, veríamos uma cidade florescente, chamada de “princezinha do Acre”, devido ao ciclo da borracha. Como a região era rica em seringueiras, árvore nativa da Amazônia, serviu de entreposto para a venda da resina natural de borracha. Ao visitar o museu da cidade tive surpresas: Xapuri foi uma importante cidade comercial e centro cultural. Recebia grandes embarcações vindas da Inglaterra. Havia até um cinema importante no início dos anos 1900. Mas tudo isso acabou quando os mesmo ingleses, protagonistas da primeira fase do capitalismo industrial, levaram clandestinamente sementes da seringueira para Ásia. Após alguns anos, toda a região amazônica sofreu uma rápida decadência econômica.
Durante a segunda guerra mundial, a produção asiática de borracha se interrompe. Os americanos pedem ao governo brasileiro que retome urgentemente a produção de borracha. E assim se fez, estimulando o deslocamento em massa de população nordestina, que passa a ocupar os seringais. Também este ciclo econômico é quebrado após o final da guerra, acentuado com o incremento da borracha sintética. O que conhecemos hoje como “povos da floresta” é a mescla de ribeirinhos tradicionais, populações indígenas que sobreviveram à violência dos seringalistas da primeira fase e os descendentes de migrantes nordestinos.
Nos anos 70, o governo militar estimula a criação de grandes fazendas de gado na região. O modelo de desenvolvimento é perverso: leva à total destruição da floresta e à expulsão de seus moradores. No seu lugar, surgem latifúndios que alojam projetos agropecuários, cuja principal finalidade é produzir carne para exportação, especialmente para os Estados Unidos.
Neste contexto, surge um importante movimento popular. Ele é a conjugação de forças sociais que se aglutinam em torno à CONTAG (confederação dos trabalhadores da Agricultura), aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e às Comunidades Eclesiais de Base, da Igreja Católica.
Conversei com lideranças da Igreja que naquela época iniciaram um lento trabalho de conscientização das lideranças populares. Desciam os rios visitando as comunidades ribeirinhas, penetravam nas florestas, faziam celebrações, ajudavam o povo a ler a bíblia com olhos críticos. Deste lento e intenso trabalho de educação popular à luz da fé surgem grandes figuras. Chico Mendes é uma delas.
Chico Mendes aprendeu a ler com o pai e era semi-alfabetizado. À medida que se comprometia com a causa da Amazônia e do seu povo, teve que aprender sozinho, como auto-didata. Com seus companheiros, mulheres e crianças, organizava o “empate”, movimento que impedia os “colonos do sul” e seus tratores ocupassem os seringais, destruíssem a floresta e plantassem no lugar o capim para o gado.
Aqui em Xapuri se respira algo deste clima de luta e de consciência. A cidade, onde predominam bicicletas nas ruas e o transporte de muitas mercadorias se faz com carro de bois, hoje tem orgulho do seu filho ilustre, incompreendido na época.
É emocionante visitar a casa de Chico Mendes (foto). Praticamente tudo está preservado. Reina a simplicidade, o essencial. Chico conseguiu comprar esta casinha na cidade um ano antes de ser assassinado. Nela morou breve período com a mulher e suas duas crianças. Na porta da cozinha ele foi assassinado por pistoleiro, a mando de um grande fazendeiro da região, no dia 22 de dezembro de 1988. Naquelas alturas, Chico Mendes já havia recebido dois prêmios internacionais pela sua luta em defesa da Amazônia. Sua proposta, realizada anos mais tarde, era de transformar a região em reserva extrativista. Ou seja, manter a floresta, possibilitando aos seus moradores o manejo sustentável de madeira, castanha, borracha e outros produtos locais.
Próximo à casa de Chico Mendes há um museu, com objetos pessoais, a toalha manchada de sangue na hora da morte, belas fotos e painéis que contam sua história e sua luta. No momento em que a humanidade redescobre a importância da Amazônia para o equilíbrio do clima (sobretudo a captura de carbono e o ciclo das chuvas) e a riqueza incalculável da biodiversidade, a figura de Chico Mendes ecoa com mais vigor. É preciso recordar a memória deste profeta e visionário. Mais ainda, é necessário somar pessoas e organizações pela defesa da Amazônia e de tudo o que ela significa para nosso mundo.Lembremo-nos de suas palavras: “No começo, pensei que estivesse lutando para salvar seringueiras. Depois, pensei que estivesse empenhado em salvar a floresta amazônica. Agora percebo que estou lutando pela humanidade”.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

A ressurreição: uma descoberta

Neste ano, participei da celebração pascal numa comunidade pobre, de uma vila na periferia da cidade. O celebrante, de uma forma criativa, nos estimulou a partilhar quais são os “sinais de ressurreição” na nossa vida. Uma pessoa lembrou-nos da luta das pessoas sem casa, que conquistaram o direito de moradia. E ela estava envolvida nesta luta. Outra recordou das duas senhoras idosas, que apesar de todos os limites de saúde física, se deslocam cada domingo de suas casas para celebrar com alegria! Tocou-me especialmente o depoimento do Dona Efigênia, uma das líderes da comunidade, que participa ativamente da organização do povo, tanto religiosa quanto social. Ela disse: “Faz muitos anos, eu vim para a cidade, com meu marido e sete filhos. Logo depois que chegamos, ele ficou desempregado. Então, foi um tempo muito difícil. Eu lavava roupa para sustentar a família. Trabalhava até de noite. Hoje, depois de tantos anos, agradeço a Deus, porque vencemos as dificuldades, e nossos filhos já estão todos criados”.
Quando terminou a celebração, fiquei saboreando estes belos testemunhos. E me perguntei porque temos tanta dificuldade em perceber os “sinais da ressurreição”, e muitas vezes continuamos “no túmulo”. Deveríamos celebrar mais as vitórias, os sinais de vida, os frutos da ressurreição.
No fundo, há um problema no discurso religioso corrente no meio cristão. Afirma-se muitas vezes que “Cristo nos salvou pela morte na cruz”. Isso é verdade, mas toca somente uma parte da experiência salvífica cristã. Na realidade, a comunhão com Deus, que leva o ser humano a realizar seus anseios mais profundos, que denominamos “salvação”, nos é oferecido pelo nascimento, pela vida, pela morte e pela ressurreição de Jesus. Não somente pela morte.
Os evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) nos dizem que Jesus é o messias, o salvador, que inaugura o Reinado de Deus (Mc 1,15) e manifesta o Deus do Reino. Pelos gestos e as palavras de Jesus, a salvação já começou! O evangelista Lucas diz isso de forma breve, no encontro de Jesus com Zaqueu: Hoje a salvação entrou nesta casa (Lc 19,9).
O apóstolo Paulo usa várias imagens de seu contexto cultural para interpretar o que significou a morte de Jesus: libertação do pecado, vitória sobre a morte, vida entregue, redenção da escravidão do pecado, expiação, morte do justo (2 Cor 5,15; Rm 6,10, Gl 2,20, Ef 5,2). Nenhuma delas, de forma isolada, dá conta de explicar o sentido salvífico de sua morte.
O mesmo Paulo anuncia que a ressurreição de Jesus também é salvadora. Jesus, o ressuscitado, é o primogênito, o verdadeiro Adão, o primeiro membro da nova humanidade (Cl 1,15.18). Em Cristo ressuscitado, somos novas criaturas!
Portanto, Jesus nos salvou por sua vida (gestos e palavras), morte e ressurreição. A ressurreição é salvadora, porque antecipa, já neste mundo, a vitória de Deus e do Bem, sobre as forças do mal e da morte.
Nos relatos dos evangelhos e nos Atos dos Apóstolos, aparecem os frutos da ressurreição na vida dos cristãos. Dois deles me tocam especialmente: a coragem e a paz. Os mesmo discípulos, que fugiram de medo, no momento da morte de Jesus, quando experimentam sua ressurreição, são capazes de enfrentar as autoridades e sustentar com firmeza: “Este Jesus, que vocês mataram, Deus o ressuscitou. E nós somos testemunhas disso!” Quando Jesus vem ao encontro dos seus discípulos, que estavam trancados na sala, lhes dá coragem e paz! Coragem para enfrentar as dificuldades e paz para ter serenidade no coração. Que este Jesus ressuscitado nos dê, hoje, coragem e paz. E que cultivemo um olhar encantado, para reconhecer os sinais de ressurreição. Amém.

Figura: Painel do ressuscitado. Frei Anderson, msc.
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domingo, 29 de março de 2009

Banquinho de 3 pernas: princípios da gestão eclesial

Quando eu era criança, gostava de sentar num pequeno banco de madeira que havia no terraço da minha casa. Diferentemente das cadeiras, esse tinha somente três pernas. E ali brincava, imaginava muitas coisas e tentava me equilibrar sobre suas bases. Esse banquinho me faz lembrar dos três componentes básicos da gestão, úteis para a evangelização: missão, valores e visão.

A missão é a razão de ser de qualquer organização. Esta palavra se originou do horizonte religioso e hoje foi apropriada pelas empresas. A missão da Igreja no Brasil está formulada no chamado “Objetivo Geral” das Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja, aprovado pela Assembléia dos nossos Bispos a cada três. É importante que ele seja conhecido e encarnado na realidade local de cada diocese, paróquia, pastoral ou movimento. A missão da Igreja traduz algo real, com a qual os cristãos se identificam e são capazes até de dar a vida. Isso nos diferencia de outras organizações que criam uma frase de impacto para sua missão, mas que não corresponde à suas ações. Certa vez, comprei uma passagem de ônibus numa empresa cujo “quadro de missão” anunciava: oferecer aos passageiros conforto, pontualidade e segurança na sua viagem. No entanto, fizemos o percurso num ônibus velho e barulhento, que chegou com mais de meia hora de atraso. Então, a missão deve ser conhecida e traduzida em práticas reais e verdadeiras.

A segunda perna do banco se chama valores compartilhados ou príncipios. Tão importante quanto saber porque uma organização existe (sua missão), é fundamental perceber como ela atua. Ou seja, as atitudes e posturas que são cultivadas pelas pessoas e pelos grupos, até o ponto de se tornar um hábito adquirido. Na comunidade eclesial, estes valores não estão escritos, mas são vividos e cultivados. Por exemplo: respeito aos outros, bondade, honestidade, generosidade, dedicação, gratuidade, participação.... Certa vez, colaborei no processo de preparação de uma assembléia diocesana e fizemos o exercício de priorizar sete valores compartilhados que caracterizariam o rosto daquela diocese. A discussão foi acirrada, porque revelou determinadas preferências que até então estavam implícitas. Ao assumir “gestão participativa” como um valor, isso levou a repensar a forma de atuação dos padres e das lideranças leigas. Os valores compartilhados se transformam também em matéria para o exame de consciência, estimulando a conversão das pessoas e a criação de estruturas correspondentes.

O último componente do nosso banquinho se chama visão de futuro. O mundo está mudando rapidamente. As conquistas do passado já não garantem a continuidade. Basta ver a crise pela qual estão passando tradicionais instituições católicas, como escolas e hospitais. A Igreja, como uma organização situada na história, necessita conhecer e interpretar os Sinais dos Tempos, para perceber os apelos de Deus neles. Ter visão de futuro significa se perguntar, como honestidade e humildade: o que queremos ser para a sociedade, num prazo relativamente longo, de 5 ou 10 anos? Qual será nossa face, nosso perfil? A que desafios atuais responderemos? A visão de futuro impulsiona a Igreja a estabelecer metas e traçar objetivos a serem alcançadas. Visão de futuro é um sonho que pode se realizar. Somente quem sonha, ousa. As conferências do Episcopado Latino Americano, sobretudo Medellín, Puebla e Aparecida, forma excelentes oportunidades para a Igreja do nosso continente rever sua atuação e estabelecer uma visão de futuro. A nível local, isso acontece nos momentos de discernimento e planejamento. Importa estar conectado com a Palavra de Deus e a realidade. Fazer ponte entre a Tradição eclesial e a necessária inovação, que o Espírito de Deus suscita. Pois Ele, em nós, “faz novas todas as coisas”.

Missão, valores e visão de futuro não são simplesmente palavrinhas mágicas que a Igreja copia das organizações de sucesso. Trata-se de componentes básicos para a gestão eclesial, animados pela fé, encharcados pela esperança e movidos pelo amor.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Ecologia e fé cristã













Neste semestre, estou fazendo uma experiência nova, como professor e agente de pastoral. Trabalho simultaneamente com duas turmas de alunos de pós-graduação em teologia, com a disciplina "Ecologia e Fé Cristã". A primeira, na Faculdade Jesuíta, em Belo Horizonte. A segunda, no ITESP, em São Paulo.
Para mim, trata-se não somente de uma atividade acadêmica ou profissional, mas também de atuar em vista da defesa de uma causa fundamental para a humanidade e o cristianismo. Proponho-me a fazer uma ponte entre os saberes da ecologia e da teologia.
E para colocar os próprios alunos em contato uns com os outros e somar na rede de comunicação via internet, criei o blog "Ecologia e fé cristã".
http://ecologiaefe.blogspot.com/
Visite o blog, acesse os artigos e dê sua opinião.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Casaldaliga: refazer os sonhos

Dom Pedro Casaldáliga, ex-bispo da prelazia de São Felix, no Mato Grosso, é um símbolo vivo das pessoas que sonham e se empenham por uma Igreja- comunidade e uma sociedade inclusiva e sustentável. Eu o conheci, faz muitos anos, em Goiânia e o tenho como uma pessoa de referência. Pequeno e frágil fisicamente, Dom Pedro surpreende sempre, ao conjugar a lucidez do profeta com a ternura do poeta, a militância política com a mística. Recentemente, ele respondeu a uma declaração do Cardeal Martini, ex-arcebispo de Milão, homem respeitado em todo o mundo pela sua postura de diálogo e renovação. Martini dizia, decepcionado: “Antes eu sonhava com uma Igreja que percorre seu caminho na pobreza e na humildade, que não depende dos poderes deste mundo; na qual se extirpasse de raiz a desconfiança; que desse espaço às pessoas que pensem com mais amplidão; que desse ânimos, especialmente, àqueles que se sentem pequenos o pecadores. Sonhava com uma Igreja jovem. Hoje não tenho mais esses sonhos”.
Selecionei para você, caro amigo(a), alguns trechos da carta de Casaldáliga. Vale ler e divulgar.

Esta afirmação categórica de Martini não pode ser uma declaração de fracasso, de decepção eclesial, de renúncia à utopia. Martini continua sonhando nada menos que com o Reino, que é a utopia das utopias, um sonho do próprio Deus. Ele e milhões de pessoas na Igreja sonhamos com a «outra Igreja possível», ao serviço do «outro Mundo possível».
Tanto na Igreja (na Igreja de Jesus que são várias Igrejas) como na Sociedade (que são vários povos, várias culturas, vários processos históricos) hoje mais do que nunca devemos radicalizar na procura da justiça e da paz, da dignidade humana e da igualdade na alteridade, do verdadeiro progresso dentro da ecologia profunda. E, como diz Bobbio, «é preciso instalar a liberdade no coração mesmo da igualdade»; hoje com uma visão e uma ação estritamente mundiais. É a outra globalização, a que reivindicam nossos pensadores, nossos militantes, nossos mártires, nossos famintos...
Poucos dias antes da clausura do Concílio Vaticano II, 40 Padres Conciliares celebraram a Eucaristia nas catacumbas romanas de Domitila, e firmaram o Pacto das Catacumbas. Dom Hélder Câmara era um dos principais animadores do grupo profético. O Pacto em seus 13 pontos insiste na pobreza evangélica da Igreja, sem títulos honoríficos, sem privilégios e sem ostentações mundanas; insiste na colegialidade e na corresponsabilidade da Igreja como Povo de Deus e na abertura ao mundo e na acolhida fraterna.
Hoje, nós, na convulsa conjuntura atual, professamos a vigência de muitos sonhos, sociais, políticos, eclesiais, aos quais de jeito nenhum modo podemos renunciar. Seguimos rechaçando o capitalismo neoliberal, o neoimperialismo do dinheiro e das armas, uma economia de mercado e de consumismo que sepulta na pobreza e na fome a uma grande maioria da Humanidade. E seguiremos rechaçando toda discriminação por motivos de gênero, de cultura, de raça. Exigimos a transformação substancial dos organismos mundiais (a ONU, o FMI, o Banco Mundial, a OMC...). Comprometemo-nos a vivermos uma «ecologia profunda e integral», propiciando uma política agrária-agrícola alternativa à política depredadora do latifúndio, da monocultura, do agrotóxico. Participaremos nas transformações sociais, políticas e econômicas, para uma democracia de «alta intensidade».
Como Igreja queremos viver, à luz do Evangelho, a paixão obsessiva de Jesus, o Reino. Queremos ser Igreja da opção pelos pobres, comunidade ecumênica e macroecumênica também. O Deus em quem acreditamos, o Abbá de Jesus, não pode ser de jeito nenhum causa de fundamentalismos, de exclusões, de inclusões absorventes, de orgulho proselitista. (..) O diálogo interreligioso não somente é possível, é necessário. Faremos da corresponsabilidade eclesial a expressão legítima de uma fé adulta. Exigiremos, corrigindo séculos de descriminação, a plena igualdade da mulher na vida e nos ministérios da Igreja. Estimularemos a liberdade e o serviço reconhecido de nossos teólogos e teólogas. A Igreja será uma rede de comunidades orantes, servidoras, proféticas, testemunhas da Boa Nova: uma Boa Nova de vida, de liberdade, de comunhão feliz. Uma Boa Nova de misericórdia, de acolhida, de perdão, de ternura, samaritana à beira de todos os caminhos da Humanidade.
A Igreja se comprometerá, sem medo, sem evasões, com as grandes causas de justiça e da paz, dos direitos humanos e da igualdade reconhecida de todos os povos. Será profecia de anuncio, de denúncia, de consolação. A política vivida por todos os cristãos e cristãs será aquela «expressão mais alta do amor fraterno» (Pio XI).
Nós nos negamos a renunciar a estes sonhos mesmo quando possam parecer quimera. «Ainda cantamos, ainda sonhamos». Nós nos atemos à palavra de Jesus: «Fogo vim trazer à Terra; e que mais posso querer senão que arda» (Lc 12,49). Com humildade e coragem, no seguimento de Jesus, tentaremos viver estes sonhos no dia a dia de nossas vidas. Seguirá havendo crises e a Humanidade, com suas religiões e suas Igrejas, seguirá sendo santa e pecadora. Mas não faltarão as campanhas universais de solidariedade, os Foros Sociais, as Vias Campesinas, os movimentos populares, as conquistas dos Sem Terra, os pactos ecológicos, os caminhos alternativos da Nossa América, as Comunidades Eclesiais de Base, os processos de reconciliação entre o Shalom e o Salam, as vitórias indígenas e afro y, em todo o caso, mais uma vez e sempre, «eu me atenho ao dito: a Esperança».
Cada um e cada uma a quem possa chegar esta circular fraterna, em comunhão de fé religiosa ou de paixão humana, receba um abraço do tamanho destes sonhos. Os velhos ainda temos visões, diz a Bíblia (Jl 3,1) (..) Seguimos Reino adentro.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Liderança, poder e pulgas

Quando as pessoas vivem e atuam em grupo, é natural que surjam lideranças. Essas são necessárias para mobilizar, animar, coordenar, canalizar as iniciativas, organizar as idéias, conceber estratégias e transformar sonhos em realidade. Acontece assim em vários espaços, desde um time de futebol num bairro, até as diversas pastorais e movimentos na Igreja. Liderar é conduzir pessoas, em vista de resultados. Todo(a) líder conquista com o tempo uma certa autoridade, que não é necessariamente formal. Ele(a) é respeitado pelos outros, que levam em conta o que ele diz e faz.
Uma liderança pode ser positiva, se movida por altos valores humanos, ou negativa, ao arrastar pessoas e até multidões ao engano e a diversas formas de dependência. Quem é líder exerce um poder, que os próprios membros do grupo atribuem a ele. Há líderes que estimulam uma gestão participativa ou compartilhada, na qual as pessoas são protagonistas, desenvolvem suas potencialidades e se comprometem de maneira criativa. Outros exercem uma autoridade centralizadora, dominadora, que controla e o grupo e mantém as pessoas sob seu domínio.
Em organizações estruturadas, é necessária uma autoridade formal, reconhecida com tal, com atribuição claras. Ora, nem sempre a liderança coincide com a autoridade formal. Pode acontecer que alguém ocupe determinado cargo, mas não saiba liderar pessoas. Então, torna-se uma autoridade com pouca expressão. Indivíduos inseguros, quando ocupam funções que concentram muito poder, mas não têm uma autoridade que “vem de dentro”, tendem a se manter no posto usando da força. Isso acontece na família, no ambiente de trabalho, e também na Igreja.
A liderança e a autoridade formal podem somar. Se usados adequadamente para o bem, levam grupos e organizações a realizar seus objetivos com eficácia. E, sobretudo, contribuem para criar um clima humanizador, no qual os seus membros se sentem contentes e felizes. Mas, porque o poder é também tão perigoso?
Quando eu morava num lar com quintal e horta, tínhamos um grande cachorro para proteger a casa. Cada 10 dias, meu coIrmão lavava o cão e lhe aplicava substâncias para combater pulgas e carrapatos. Certa vez, perguntei à pessoa que dava banho no cachorro a razão de tamanho cuidado. Ele respondeu prontamente: “se eu não fizer isso, ele pode adoecer. Em vez de ajudar a casa, será um problema a mais”.
O poder, seja em forma de liderança ou de autoridade formal, tem dois lados, como as faces de uma moeda. Ele é necessário em qualquer grupo humano, para dar direção, convergir as diferenças, multiplicar os talentos etc. Neste sentido, é fundamental para a gestão. No entanto, o poder sem limites se assemelha às pulgas e carrapatos que se proliferam nos cachorros. Pode transformar-se num grande problema. O líder ou a autoridade têm que continuamente rever suas motivações, “vigiar e orar”, para que o poder não “lhe suba à cabeça”, não desenvolva a vaidade, a auto-suficiência, a arrogância e o autoritarismo. Também a adoção de uma gestão participativa ou compartilhada ajuda a combater a tentação do poder.Iluminados pela fé e construindo uma comunidade de irmãos e irmãs, os cristãos são chamados a lidar com o poder como “criaturas novas”, fazendo fluir os processos, como águas que correm nos riachos sem diques. Assim, na gestão se realizará a proposta de Jesus: “Quem quiser ser maior, seja o servidor de todos”.
Para saber mais, veja o capitulo 6 do meu livro: Gestão e Espiritualidade, Paulinas.